segunda-feira, 30 de agosto de 2010




"Sobre o Pavimento Mosaico, imagem da Materialidade, erguem-se duas colunas do Binário distintivo. Entre ambas apresenta-se o triplo aspecto do que é: no alto, nimbado de nuvens, o Delta luminoso; no meio, o Pentagrama hominal que flameja com todas as suas energias activas; em baixo o Cubo perfeito, acabamento do ideal realizador.(...)"

Oswald Wirth
O Simbolismo Oculto da Franco-Maçonaria
Editora Zéfiro

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

O Caminho da Serpente - Fernando Pessoa



Todo homem, que tenha que talhar para si um caminho para Alto, encontrará obstáculos incompreensíveis e constantes. Se não fossem mais que os obstáculos que se atravessam e estimulam, pelo perigo ou pela resistência directa, bem iria, e os próprios obstáculos seriam o clarim para o avanço. Mas encontrará outros — os obstáculos reles que vexam e vergam, os obstáculos suaves que adormecem e viciam, os obstáculos ternos que o farão, como Orfeu, volver o erro do olhar para o vedado Averno. Cercá-lo-ão, não só resistências duras, como as que os penhascos erguem como tropeço, mas resistências brandas, como as memórias dos vales, e a dos lares nas faldas. E o triunfo consiste na força para, sabendo sentir essas atracções intensamente (pois não sabê-las sentir é não ter alma para a subida), as submeter à emoção superior; sabendo organizar as vontades do amor e da terra, saber submetê-las à vontade do espírito do mundo. Este processo de vitória, figuram-o os emblemadores no símbolo da Crucifixão da Rosa—ou seja no sacrifício da emoção do mundo (a Rosa, que é o círculo em flor) nas linhas cruzadas da vontade fundamental e da emoção fundamental, que formam o substrato do Mundo, não como Realidade (que isso é o circulo) mas como produto do Espírito (que isso é a cruz).


Fernando Pessoa

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Os Caminhos do Misticismo e da Magia - Fernando Pessoa




Os caminhos do Misticismo e da Magia são muitas vezes caminhos de engano e de erro. O Misticismo significa essencialmente confiança na intuição; a Magia significa essencialmente confiança no poder. A intuição é uma operação da mente pela qual os resultados da inteligência são obtidos sem o uso da inteligência. O poder, no sentido do poder mágico, é uma operação da mente pela qual os resultados do esforço contínuo são obtidos sem o uso do esforço contínuo. Ambos, porém, por mais tempo que levem a operar, são atalhos para o conhecimento. Em certo sentido, tanto o Misticismo como a Magia são confissões de impotência. O místico é um homem que sente que não tem em si a força do pensamento para atingir a verdade pelo pensamento. O mágico é um homem que sente que não tem em si a força de vontade para atingir a verdade (ou o poder) pela força de vontade. A rapariga ociosa que adivinha ou que se deita a adivinhar coisas é uma mística dentro do seu campo superficial; é demasiado preguiçosa para tentar saber. A camponesa que tenta reter o amor do marido por meio de encantamentos e poções é um mágico dentro das suas fronteiras estreitas; ela é demasiado ignorante e demasiado fraca para intentar atingir o seu fim por encantamento directo, por sedução permanente. Em ambos os casos há uma evasão.

Isto não quer dizer — ou, pelo menos, não precisa de querer dizer — que os resultados do Misticismo e da Magia estejam necessariamente errados. Quer dizer, contudo, que não há nenhum critério pelo qual possamos distinguir entre um resultado errado e um resultado certo num caminho ou noutro. Na Gnose, onde empregamos o intelecto, temos, pelo menos, o lastro do raciocínio; podemos, pelo menos, comparar um «resultado» com outro, examinar se eles são contraditórios, quer cada um em si, quer em referência um ao outro. Podemos não raciocinar bem, mas raciocinamos. Se errarmos, é porque nos enganamos e não porque estejamos errados, como nos outros dois caminhos. É como quando se soma mal; a falha não está em somar, mas em não somar bem; somar é, porém, o sistema correcto para obter um total.

Isto ficará claro, se formos buscar exemplos simples, podíamos dizer correntes, ao Misticismo e à Magia. Um caso simples de Misticismo é o tipo comum de intuição a que se chama «palpite» em linguagem vulgar.
Uma pessoa tem um palpite de que em certo número terá o primeiro prémio da lotaria. De vez em quando o palpite sai certo, mas todos sabemos que, por cada vez que sai certo, há milhares de vezes em que sai errado. Se assim não fosse, um clube de apostas não seria o grande negócio que sempre é. Neste caso, na verdade, há um caminho fácil para verificar a exactidão do palpite: a lotaria, uma vez extraída, mostrá-lo-á. Mas como é que se há-de provar ou refutar o palpite do místico de que atingiu a unidade com Cristo? Ele diz que sabe, que sente... Mas o louco que se julga Cristo ou rei de certo país está tão seguro disso como o místico da sua intuição.


Tomemos, de novo, um caso simples de Magia — o espiritismo. O espiritismo é magia, porque é evocação dos espíritos dos mortos a esta vida. Faz-se uma sessão, evoca-se o espírito do falecido X, a voz do médium, a mesa pé de galo ou a prancheta anuncia que ele apareceu. Como é que sabemos que sim? A comunicação de coisas conhecidas somente de um dos presentes pode ser uma projecção da mente desse que está presente. A comunicação de coisas somente conhecidas do falecido e depois verificadas pode ser uma comunicação de alguma força ou mesmo espírito, outro que não o do falecido. E quando o espírito dá informação da sua morada presente, por que método nos asseguraremos se essa informação é certa ou errada? Não digo que tudo o que emerge numa sessão ou que emergiu em sessões esteja errado. Nem digo que esteja certo: digo que não há meio de conhecermos a origem da informação assim recebida, e quando a informação diz respeito a outros mundos ou a coisas de outro modo não verificáveis neste, não há meio de conhecermos a sua origem ou a sua verdade.



Fernando Pessoa

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Ordem Rosa Cruz - Stanislas de Guaita




Ouando, perto do fim do reinado de Henrique IV, o mundo profano ouviu falar pela primeira vez de uma associação muito fechada de teósofos taumaturgos, os Rosa-Cruzes já existiam há mais de um século. Derivaram seu nome de um emblema pantacular, de muita tradição entre eles. Esse pantáculo é o mesmo que Valentin Andréa (ou melhor Andréas), o grão-mestre de então, trazia gravado na pedra de seu anel: uma cruz de São ]oão, cuja áustera nudez ramificava-se em quatro rosas, desabrochadas em seus ângulos.

Muito se falou que a Ordem não remontava a antes de Valentin Andréas, mas isso é um erro manifesto. Se para refutá-lo evocarmos o artigo dos estatutos que ordenava dissimular durante cento e vinte anos a existência da mística fraternidade, poderíamos considerar a prova como insuficiente. Melhor seria recorrer a outros argumentos. Bem antes do ano de 1613, quando apareceu o manifesto dos Rosa-Cruzes, e mesmo antes de 1604, quando o mundo profano começou a suspeitar de sua existência, colhemos aqui e ali, vestígios incontestáveis de sua associação: eles são inúmeros, para quem sabe ler os escritos dos adeptos da época.
Vejamos alguns exemplos. Todos os arcanos Rosa-Cruzes são representados em um dos pantáculos do Amphitheatrum saptientiae eternae(122), onde Khunrath desenhou um Cristo de braços abertos em cruz, em uma rosa de luz. Ora, o livro de Khunrath traz uma aprovação imperial com data de 1598. Contudo, é principalmente em Paracelso, falecido em 1541, que devemos obter as provas decisivas de uma Rosa-Cruz latente no século XVI. Podemos ler em seu tratado De Mineralibus (tomo II, pp. 341-350 da edição de Genebra)(123) o anúncio formal do milagroso acontecimento que deveria confundir o século seguinte. Diz ele: "Nada existe de octulto que não deva ser descoberto. É assim que deverá suceder-me um ser prodigioso, que revelará muitas coisas" (De Mineralibus, 1). Algumas páginas adiante Paracelso precisa seu pensamento, anunciando certa descoberta: "que deve permanecer velada até a chegada de ELIAS-ARTISTA" (De Mineralibus, 8).

Elias Artista! Gênio diretor dos Rosa-Cruzes, personificação simbólica da Ordem, embaixador do Santo Paracleto! Paracelso, o Grande, prediz tua vinda, ó Sopro Coletivo das generosas reivindicações, Espírito de liberdade, de ciência e de amor que deve regenerar o mundo!...
Em outra passagem, Paracelso é mais formal ainda. Abramos sua espantosa Prognosticatio(124), coletânea de profecias, cuja única edição traz a data de 1536. O que vemos na figura XXVI? Uma rosa desabrochada numa coroa, e o místico diagrama (F), emblema da dupla cruz, enxertado sobre esta rosa. Ora, eis a legenda que se lê embaixo: "A Sibila profetizou o digamma eólico. Foi também pelo direito, ó cruz dupla, que foste enxertada sobre a rosa: és o produto do tempo, obtendo precocemente a maturidade. Tudo o que a Sibila predisse sobre ti realizar-se-á infalivelmente em ti, motivo pelo qual o verão produziu suas rosas... Triste época, em verdade, a nossa, onde tudo se faz sem ordem. Essa desordem é o mais evidente símbolo da inconstância humana. Mas tu, sempre de acordo contigo mesma, só produzes frutos estáveis, pois construíste sobre a pedra boa; e, tal como a montanha de Sião, nada mais poderá abalar-te; todas as coisas favoráveis chegam a ti como que por um desejo. Tanto que os homens confundidos dirão que é milagre. Mas o tempo e a idade propícia trarão essas coisas com eles; quando a hora soar, será necessário que elas se realizem, e é por isso que ELE VEM(125)" (versão textual).

Quem deverá vir? Ele, o Espírito radiante do ensinamento integral dos Rosa-Cruzes: Elias-Artista!
Não teríamos nenhum impedimento para reproduzir, se necessário, outros textos não menos formais, para provar que Andréas não foi o fundador da Ordem Rosa-Cruz.

Não nos iremos limitar às lendas Rosa-Cruzes. Não cabe aqui discutir se a história do fundador Christian Rosenkreutz é puramente legendária, ou se um fidalgo de carne e osso, nascido na Alemanha por volta de 1378, conseguiu que o santuário da Cabala lhe fosse aberto pelos sábios de Damcar (provavelmente Damasco), após uma longa peregrinação pelas terras do Oriente; e se, de volta à Alemanha, tendo transmitido a alguns discípulos a provisão dos arcanos, ele se tornou o eremita do mistério e passou sua longa velhice no fundo de uma caverna, onde a morte o esqueceu até 1484. Durante três séculos as controvérsias sobre esse ponto não conduziram a nenhuma conclusão positiva; não temos a mínima vocação para encher páginas fúteis, para acrescentá-las às antigas... 
 
Essa gruta, sepulcro de Rosenkreutz, só foi descoberta em 1684, ou seja, cento e vinte anos após a morte do mago, conforme a estranha profecia que se pode ler na parede de rocha: "Serei descoberto após cento e vinte anos", - profecia que nos interessa pouco no momento. Todas essas lendas têm seu interesse, sem dúvida nenhuma, assim como possuem sua razão de ser do ponto de vista cabalístico. O mesmo se pode dizer das mil e uma maravilhas que os herdeiros espirituais de Rosenkreutz - segundo se afirma - teriam descoberto a partir da meditação sobre os mistérios. As latitudes de um campo mais vasto seriam necessárias, em todo o caso, para efetuar esse inventário e revelar o significado preciso e profundo desses símbolos múltiplos; talvez algum dia nos lancemos nessa tarefa.

O que nos é lícito afirmar desde já é que a Rosa-Cruz, cujos emblemas constitutivos nos conduzem aos poemas de Dante e de Guillaume de Lorris, durante muito tempo funcionou veladamente, antes de manifestar-se publicamente através de obras.

Hoje, quantos falsos magos ousam levar a mistificação ao ponto de cobrir com o rótulo ultramontano a Rosa-Cruz (restituída desde então, dizem eles, à pureza de sua gloriosa origem)(126). Pode parecer interessante transcrever duas frases do Manifesto(127) da Ordem, publicado pelo Grão-Mestre em 1615. Os irmãos aí proclamam, diz o contemporâneo Naudé(128): Que por seu intermédio, o tríplice diadema do Papa será reduzido a pó;

Que eles confessam livremente, e publicam sem nenhum medo de serem castigados, que o papa é o Anticristo.

Três linhas adiante, eles manifestam o desejo de que se retorne à simplicidade dogmática e rítualista da Igreja primitiva. Sem dúvida, essas frases, como todas as outras de seu Manifesto, são intencionalmente exaltadas, notoriamente impelidas ao maravilhoso, às vezes absurdas. Inúmeros prodígios são aí anunciados, sendo que vários, tomados ao pé da letra (que mata, dizia São Paulo), chocam-se contra a impossibilidade física. Mas sob essa forma paradoxal, esses engenhosos teósofos tiveram o cuidado de ocultar aos olhos dos tolos e de designar à sagacidade dos sábios as mais preciosas luzes do ocultismo tradicional.

Assim, jamais os Rosa-Cruzes renegaram o catolicismo na significação esplêndida de sua verdadeira etimologia, reveladora de um esoterismo superior; foram inspirados demais pelo Espírito que vivifica, para jamais atentarem contra a hierarquia gnóstica. Eles (tão ligados aos símbolos cristãos, denominavam Capela do Espírito Santo seu colégio supremo e Liberdade do Evangelho um de seus mais ocultos manuais) não se furtavam a ver no Santo Padre o princípio encarnado da unidade viva, e no papado espiritual a pedra angular do templo-síntese onde oficiarão um dia os pontífices professadores da Religião-Sabedoria universal. Bem mais, muitos dos Irmãos, nascidos no protestantismo, proclamavam-se católicos de viva voz, a exemplo de seu ilustre patrono Khunrath, de Leipzig.

Lembremos, ainda, que Valentin Andréas foi o instigador, em 1620, de uma Fraternidade Cristã, que se fundiu, mais tarde, à Fraternidade-Mãe dos Rosa-Cruzes.

Mas o abuso do papado temporal fazia com que eles fossem implacáveis e criticassem as ações ridículas, difamassem as intrigas, sem tréguas e sem piedade.

O verbo anticlerical dos Rosa-Cruzes clamava tão intensamente por toda a Europa, nos primeiros lustros do século XVII, que se acreditou tratar-se de uma associação secreta de huguenotes fanatizados; ledo engano. Anticlerical jamais significou anticatólico ou anticristão; confundir seria um erro. No papa, os Rosa-Cruzes distinguiam duas potências, encarnadas em uma só carne: Jesus e César. Quando qualificavam o sucessor de Pedro de anticristo, eles ameaçavam destruir sua tríplice coroa, mas não visavam senão o déspota temporal do Vaticano.

Seu sistema era, em suma, exaltar ao máximo as fórmulas até o paradoxo, falsear as obras até o milagre. Tinham tomado emprestado esse método a seus antigos mestres, os Cabalistas. Davam às alegorias um estilo tão inverossímil, que somente os imbecis se atinham sentido aparente, e os demais adivinham no primeiro contato o valor íntimo de um sentido oculto - era, de fato, um método inteligente. Foi assim que pregaram cartazes em Paris, no ano de 1622, contendo as proclamações seguintes, próprias convenhamos a intrigar os espíritos sutis e a distanciar as mentes parvas:

PRIMEIRO CARTAZ: "Nós, deputados do Colégio principal dos Irmãos da Rosa-Cruz, estamos visível e invisivelmente nesta cidade, pela graça do Altíssimo, em direção do qual se volta o coração dos justos. Mostramos e ensinamos sem limitações, podemos falar toda a espécie de língua dos países onde desejamos permanecer, para livrar os homens, nossos semelhantes, do erro e da morte."
 
SEGUNDO CARTAZ: "Se alguém deseja nos ver por simples curiosidade, não se comunicará jamais conosco; mas se a vontade o conduz realmente e de fato a inscrever-se nos registros de nossa fraternidade, nós que lemos os pensamentos o faremos ver a veracidade de nossas promessas; é por isso que não revelamos nosso endereço, pois os pensamentos, refletindo a vontade real do leitor, serão capazes de nos fazer conhecer a ele e ele a nós."

Não surpreenderemos os estudiosos, mesmo pouco avançados, do ocultismo, se protestarmos aqui que o anúncio dessas prerrogativas que os Irmãos exibiam, secretamente, sob a aparência de uma loucura incurável, ocultam significações da mais perfeita sabedoria. A última das pretensões das quais eles se vangloriavam, aquela que se julgará talvez a mais exorbitante, é precisamente a única que se poderá interpretar ao pé da letra. Ela lembra a condição expressa da admissão ao mais alto grau de uma fraternidade muito fechada e pouco conhecida, no areópago supremo da qual o postulante é obrigado a apresentar-se em corpo astral...

Os Irmãos iluminados da Rosa-Cruz eram obrigados, por juramento, a praticar a medicina oculta por onde quer que passassem, sem jamais receber remuneração alguma, sob nenhum pretexto. Psicurgia, Mestria Vital, Hermetismo, Teurgia e Cabala não tinham nenhum segredo para os mais avançados.

Um artigo de sua profissão de fé obrigava-os a "acreditar firmemente que, caso sua associação fracassasse, ela entraria num processo de regressão, voltando ao sepulcro de seu primeiro fundador". Isso quer dizer que se acontecer que um dos Irmãos se comprometa no mundo, a Ordem que eles terão manifestado imperfeitamente em atos voltará a seu potencial; de seu estado de abertura, ela voltará a ser oculta...

Assim como nenhum homem é perfeito, nenhuma sociedade é indefectível. A Ordem enfraqueceu e, por volta de 1630, entrou pelo menos como associação regular - nas trevas ocultas de onde saíra vinte anos antes(129). Só alguns Rosa-Cruzes manifestavam-se esporadicamente. A unidade coletiva pareceu adormecer por longo tempo no silêncio da gruta, de onde a fizeram sair novamente em 1888.

Os homens estão sujeitos ao erro, à malícia, à cegueira, e os Rosa-Cruzes são homens;
entretanto, não se podem computar suas faltas ao abstrato da Ordem. Elias-Artista é infalível, imortal, e além disso, inacessível tanto às imperfeições como às manchas e às ridicularizações dos homens de carne que desejam manifestá-lo. Espírito de luz e de progresso, ele se encarna nos seres de boa vontade que O evocam. Se estes porventura tropeçarem no caminho, Elias-Artista os abandonará.

Fazer esse Verbo Superior mentir é impossível, mesmo que se possa mentir em Seu nome. Pois cedo ou tarde Ele encontra um órgão digno Dele (nem que seja por um minuto), uma boca fiel e leal (nem que seja para pronunciar uma só palavra). Por esse órgão de eleição, ou por esses lábios de encontro - que importa? - Sua voz se faz ouvir, poderosa e vibrante da autoridade serena e decisiva que dá ao verbo humano a inspiração do Alto. Assim são desmentidos na terra aqueles que Sua justiça havia condenado abstratamente.

Evitemos falsear o espírito tradicional da Ordem; sendo reprovados no Alto, no mesmo instante, cedo ou tarde seríamos renegados aqui embaixo pelo misterioso demiurgo que a Ordem saúda por esse nome: Elias-Artista!

Ele não é a Luz, mas, como São João Batista. Sua missão é dar o testemunho da Luz de Glória, que deve irradiar de um novo céu sobre uma terra rejuvenescido. Que Ele se manifeste por conselhos de força e que Ele desobstrua a pirâmide das santas tradições, desfigurada pelas camadas heteróclitas de detritos e de caliças que vinte séculos acumularam sobre ela. E que enfim, por Ele, as sendas sejam abertas para receber o Cristo glorioso, no ninho maior do qual se dissipará - estando Sua obra concluída - o precursor dos tempos futuros, a expressão humana do Santo Paracleto, o gênio da Ciência e da Liberdade, da Sabedoria e da Justiça integral: Elias-Artista.

3. Bringaret...

Bringaret, provavelmente Jean Bringern, o autor da versão alemã do Manifesto de Andréas, impresso em Frankfurt em 1615, juntamente com uma tradução da Confissão de Fé dos Irmãos da Rosa-Cruz (Veja Gabriel Naudé, Instruction à Ia France, p. 31).

Esses quadros eram todos da lavra do proprietário 
 
O leitor atento de Zanoni não poderá deixar de pensar nesse momento no pintor Clarence Glyndon, um dos personagens que surgem em primeiro plano nesta grande obra esotérica. Glyndon é o aspirante excluído do adeptado, não pelo vício de incapacidade mental ou de fraqueza de alma, mas ao contrário, pelo orgulho e pela temeridade que o induziram a desobedecer as ordens peremptórias de Mejnour, o Mago.

O neófito dos mistérios só quis tributar à sua audácia a coroa da eleição; o hierofante estando ausente, tentou conquistar de assalto as prerrogativas do Sanctum Regnum, desafiando o Guardião do Umbral... Mejnour vai puní-lo fechando-lhe para sempre a porta do santuário, pois o fracasso é definitivo e a suprema prova não se tenta duas vezes. Mas não deixa de estabelecer-se uma comunicação entre o visível e o invisível; o véu que separava Glyndon do mundo astral é rompido. Regressando à vida cotidiana, o pintor debater-se-á entre as duas influências adversas, fasta e nefasta, que disputarão o seu ser, isto é, a virtude vivificadora do elixir e a obsessão do fantasma.

Liberado finalmente por Zanoni, que o ressuscita para a vida ativa e serena de antes da prova, seu longo martírio vai parecer-lhe a reminiscência de um pesadelo e o ensinamento substancial adquirido na escola dos dois caldeus subsiste apenas ao naufrágio das ilusões perdidas, fazendo do velho Glyndon um iniciado especulativo, um amador apaixonado das ciências ocultas...

Qualquer que seja a parcela de ficção inserida na possível realidade dos fatos revelados neste prefácio, não há dúvida de que Bulwer não quer dar a entender que Glyndon e o velho cavalheiro encontrado na livraria excêntrica são o mesmo personagem. Inúmeros detalhes não permitem duvidar disso e a sagacidade do leitor os distinguirá sem muitas dificuldades.
...A mais extensa distinção entre o Realismo e a Verdade. 
 
O realismo dá um colorido servil às coisas, tais como os sentidos fornecem sua noção no mundo físico; a verdadeira arte, comparando esta noção dada pelos sentidos com o ideal dessas mesmas coisas intuitivamente pressentido, reergue e corrige os objetos segundo o modelo de seu arquétipo. E se o Real pode ser concebido sob a aparência que nos é sensivelmente proposta, o Verdadeiro só se concebe compreendido na revelação das Essências e das formas puras; é através de tais indícios que nos cabe definir a realidade como aquilo que é, no sentido dos positivistas (ou, melhor, daquilo que parece ser), e a verdade como aquilo que deveria ser (ou melhor, o que virtualmente por direito concebido, mas que não existe fisicamente de maneira palpável).
...pagou com sua vida pela maliciosa sátira... 
 
Villars (abade de Montfaucon de) nasceu perto de Toulon, em 1635, e morreu em 1673, em circunstâncias misteriosas. Seus contemporâneos acreditaram tratar-se de uma vingança oculta. No ano de 1670, o abade de Villars publicou sob o título O Conde de Gabalis, ou diálogos sobre as Ciências Ocultas, um panfleto bastante estranho, aliás agradavelmente escrito, onde zombava do simbolismo dos RosaCruzes, com interpretações ao pé da letra; mas isso em estilo bastante equívoco e de maneira a fazer crer, que, por ser um fervoroso adepto da Alta Ciência, ele só zombava pela forma, e da boca para fora. Por outro lado, não se ignorava que ele se fizera iniciar outrora nos mistérios dessa Ordem Cabalística, e ele próprio deixara entender, com um tom meio brincalhão e ansioso, a vários íntimos seus que, convidado a comparecer diante de uma espécie de Corte Vêmica, sob a acusação de ter profanado os arcanos, não quis obedecer; mas, à revelia, os irmãos o tinham condenado à morte como costumavam fazer com os reveladores e traidores... Entretanto, ele tinha ainda recebido um prazo para opor-se à sentença... Os amigos do abade acreditaram tratar-se de uma mistificação em estilo gracejador. Mas a lembrança de todos esses fatos lhes veio à memória quando o planfletário espiritual foi raptado e assassinado na estrada que conduz a Lyon (1673).

...Salamandra ou Silfo!... o senhor também cai no erro comum... 
 
Sob a graciosa alegoria do casamento dos Rosa-Cruzes com as Salamandras, os Silfos e outros Espíritos dos elementos, esses adeptos da Escola de Paracelso simbolizavam o poder que o homem pode conquistar sobre as forças semiconscientes da Natureza.

O Leitor não ignora que, seguindo essas tradições ao pé da letra, as Salamandras habitam a região do Fogo; as Ondinas, a da Água; os Silfos povoam a imensidão dos ares, e os Gnomos as cavernas do mundo subterrâneo. A antigüidade pagã multiplicava ainda mais as raças demiúrgicas, ou dos deuses inferiores. Cada povo inventava nomes para designá-los; não havia fonte que não se glorificasse de alguma ninfa tutelar, não havia floresta onde não se reverenciassem faunos, sátiros e silvanos, etc...

8. ...Imortais obras-primas de Apolônio.
9. ...Nesse caso, o senhor jamais sonhou.
Apolônio (de Tiana), veja à página 11.

Esta resposta do velho iniciado é plena de profundidade. Sabe-se que, durante o sono, o homem interno abandona seu despojo material para banhar seu corpo luminoso fatigado e retomar sua vitalidade esgotada no Oceano fluídico universal. Ele pode assim transportar-se a distâncias imensas (veja nossas Notas sobre o Êxtase, pp. 57 a 61) e discernir as coisas exteriores a ele, nos planos físico e astral, por intermédio dos órgãos de percepção de seu corpo astral, ou mediador plástico. Mas, por mais que o ser astral se distancie de seu invólucro material, permanece unido a ele por uma cadeia simpática de tal eficácia, que à mínima sensação anormal percebida por intermédio desse cordão fluídico o homem interno é bruscamente trazido a seu corpo exterior, no qual se reintegra imediatamente, ocasionando o despertar. Em certos casos, felizmente bastante raros, onde o choque foi extremamente intenso, o cordão pode romper-se, o que ocasiona a morte imediata. Por isso, é perigoso despertar de sobressalto as pessoas que sonham.

O próprio sonho não é outra coisa senão a percepção mais ou menos confusa dos reflexos e dos fenômenos do mundo astral, cujas lembranças bastante vagas só se coordenam imperfeitamente no estado de vigília.

Os iniciados sabem em que condições hiperfísicas o corpo astral, assim expulso de sua efígie carnal, pelo sono ou pelo êxtase, pode condensar-se, tornar-se objetivo ao ponto de ser visto e tocado, mesmo a distâncias enormes do local onde o corpo material jaz imóvel e, geralmente, em catalepsia. A história fornece-nos vários exemplos desse fenômeno, em casos em que ele pode ser bem verificado.

"Nada no mundo, diz Eliphas, "é melhor atestado e mais incontestavelmente provado do que a presença visível e real do pe. Alphonse de Liguori ao lado do papa agonizante, enquanto que o mesmo personagem era visto em sua casa, a uma grande distância de Roma, orando e em êxtase. A presença do missionário François Xavier em vários locais ao mesmo tempo não foi constatada com menor rigor(130). Ver, ainda, o livro de Gurney, Meyers e Podmore, Phanstams of the living (3 vol. in-8°), ou o resumo francês dessa grande obra, efetuada por M.L.Marillier, sob um título menos explícito e significativo: As alucinações telepáticas (Les Hallucinations télépathiques Paris, 1891, in-8.°).

Esta fase de aparição à distância de um ser vivo, cujo corpo jaz adormecido no mesmo instante longe do lugar onde se produz o fenômeno, tem o nome de desdobramento.
10. ...Testemunho ocular da Revolução Francesa...

É inútil sublinhar aqui esse traço revelador, entre outros, da identidade que, segundo entendemos, se impõe entre Clarence Glyndon da narrativa e o old gentleman do Prefácio.
...Platão assinala quatro tipos de Êxtase... 
 
Cornélio Agrippa faz, no terceiro volume de Filosofia Oculta, um comentário extenso dessa classificação quaternária, advinda de Platão e dos Alexandrinos (Capítulos XLVI-XLIX).
Depois de ter definido o Êxtase (iluminação da alma pelos deuses ou gênios) - uma alienação do homem animal sensual e, ainda, uma amarra que mantém cativo esse carcereiro da alma, de modo que ela se solta da prisão que não está mais guardada e, livre, sob os influxos divinos, envolve todas as coisas e prevê o futuro -, Agrippa detalha quatro tipos de furores ou êxtases, que distingue pela diversidade de suas origens: o primeiro procede das MUSAS (êxtase Musical), o segundo de DIONISO (Êxtase Místico), o terceiro de APOLO (Êxtase Sibilino), o quarto, enfim, de VÊNUS (Êxtase de Amor).

O primeiro furor, segundo o discípulo de Tritemo, imanta a inteligência, tornando-a divina e apta a atrair as influências superiores, pelas virtudes das coisas naturais(131). As musas nada mais são do que as almas das esferas celestes que dirigem hierarquicamente as qualidades atrativas das coisas materiais, com relação ao que se encontra no Alto. A Lua rege as plantas, as pedras e os metais; Mercúrio, aquilo que provém da natureza animal e principalmente o que se refere ao beber e ao comer; Vênus rege os perfumes, ungüentos, exalações e fumigações; o Sol preside à voz, às palavras, à música, à harmonia; Marte, às paixões veementes, às afecções da alma, ao ímpeto da imaginação; Júpiter governa o que se refere à razão; Saturno rege tudo o que se refere à inteligência e ao espírito puro - eis o que concerne às sete esferas dos planetas. Restam a oitava esfera (aquela das Estrelas Fixas), que exerce influência sobre a astrologia e seus instrumentos e a nona, enfim (aquela do Primeiro Móbil), que exerce sua influência sobre o que se refere à analogia e ao símbolo: números, figuras, pantáculos, efígies de divindades, etc. Tal é, segundo Agrippa, o governo cósmico das nove Musas, e suas correspondências...

O segundo furor, emanado de DIONISO, obtém-se pelas cerimônias exteriores do culto: 
exorcismos, sacramentos, solenidades, práticas e pompas religiosas, etc. Sublimando a alma na região espiritual, que é a parte mais elevada, o Êxtase de Dioniso faz desta alma um templo purificado, digno de ser visitado pelos deuses. Desde então, os deuses vêm morar nele e o enchem de oráculos, numa efusão de alegria divina e de inefável sabedoria. Eles não se manifestam por sinais ou prognósticos, mas diretamente, acionando o espírito ou ainda, às vezes, por visões claras ou por vozes articuladas. Um exemplo, entre vários, é o demônio de Sócrates.

O terceiro furor provém de APOLO, que é o Espírito Universal, a alma inteligente do mundo. Se o furor de Dioniso é fundamentado por pompas exteriores do culto, o de Apolo obtém-se pelos mistérios sagrados, as adorações, as invocações, a virtude dos objetos consagrados e as práticas da Magia. É o Espírito de profecia que repentinamente desce sobre um mortal e o invade inteiramente. O mais ignorante, purificado sobre o todo poderoso amplexo de Deus, vaticina os oráculos da suprema sabedoria. Exemplo: os Sibilas.

O quarto juror, enviado por VÊNUS, o furor do amor, identifica a alma humana com a natureza divina e a assimila às potências empíreas. Deve-se ver aí a reintegração propriamente dita: um contato essencial, uma fusão temporária da alma humana transfigurada com a divindade transfigurante, que lhe infunde a Sabedoria em um abraço sublime, transpondo os limites do Entendimento. É por isso que Orfeu considerou o Amor cego como superior ao entendimento humano(132), acrescenta Agrippa.

Esses comentários distintivos são excelentes(133). Mas nada impede que o texto platônico tenha outra interpretação, uma vez que o sentido dos apotegmas é múltiplo em Magia, bem como o sentido dos próprios símbolos. Assim, o Êxtase enviado pelas Musas (inspiradoras das inteligências e reitoras das esferas) pode ser entendido igualmente como a iluminação espontânea, que favorece os homens de gênio: seja aguilhão fulgurante do pensamento, ou chama criadora da arte. Lá jaz o arcano de uma apoteose semiconsciente da natureza adâmica, ilustrada por intervalos, e depois obscurecida.

Traduziremos ainda Êxtase Musical no sentido estrito da palavra? Leitor de Zanoni, nós o podemos, em memória do papel preponderante(134) reservado por Bulwer Lytton ao pai da jovem, esse bizarro e genial maestro Pisani. Viola, nascida de um sonho, caminhará no sonho, protegida do mundo exterior por uma muralha de melodia. Silfos e Salamandras, de asas vibrantes e musicais, transparecem em rivalidade na atmosfera encantada engendrada pelos acordes do violino. É toda uma teurgia evocatória em volta do berço da criança; o milagroso ambiente torna-a predestinada a encontrar o mago, do qual ela se tornará a fatal delícia e o inocente flagelo. Podem-se ler, já, as fatalidades de sua vida futura, virtualmente incluída nas ondas sonoras do violino paterno.

Os músicos mais importantes de hoje sabem o que é a Música, concebida em sua essência e potencialidades? Eles vêem nela apenas uma arte divina, mas só uma arte. "Ora, o que fazia da Música uma ciência tão importante para os antigos era a faculdade que nela haviam reconhecido de poder facilmente servir de meio de passagem do físico ao intelectual; de forma que, como transportavam de uma natureza para outra as idéias que ela fornecia, acreditavam-se autorizados a atingir, por analogia, o Desconhecido partindo do conhecido. A Música então, era, entre suas mãos uma espécie de medida proporcional que eles aplicavam às essências espirituais" (Fabre d'Olivet, História Filosófica do Gênero Humano, 1, p. 264). Esta simples citação deve bastar. É suficiente para entrever a que nível a Música pode, sozinha, servir de base a uma categoria de iluminação celeste: aquela correspondente ao Êxtase Musical, cuja significação pode ser interpretada textualmente.

Marquês de Stanislas de Guaita 

(fonte: Hermanubis; em Português do Brasil)

O Suplício fisico de Jacques de Molay



O suplício físico de Jacques de Molay, impotente para produzir nenhum resultado mais que baixamente material, desencadeou sobre a Igreja as forças mágicas que essa acção material era incompetente para dominar, servindo só para as desencadear. E o pior foi que o processo de imolação fosse pelo Fogo, isto é, pelo Elemento da Ordem. Assim, para falar um pouco obscuramente, o que era Adepto Exempto, em vez de passar a Mestre do Templo, foi erguido a Mago, e, apto a pronunciar a Palavra da Era, pronunciou-a como Irmão Negro, e contra a Igreja. Toda a civilização moderna, desde a Reforma aos nossos tempos, no que é oposição à Igreja e conspurcação dela e dos seus princípios, é a vingança encarnada de Jacques do Molay. A fogueira em que foi queimado o Grão-Mestre dos Templários foi o lume que ateou o incêndio em que hoje todos ardemos.

Num ponto, porém, a vingança de Molay, operando per vias inferiores, caiu no mesmo erro em que haviam caído os seus algozes. Foi quando D. Sebastião, AE [Adepto Exempto], foi feito cair em Alcácer Quibir. Caiu pela espada, isto é, pela Terra, e o erro foi o mesmo que o de fazer Molay cair pelo Fogo, porque de igual natureza. No mesmo modo o Adepto Exempto ascendeu a Mago, queimando o grau intermédio, e pronunciou, no tempo dado, a Palavra de Era seguinte.


Fernando Pessoa

O Lado Oculto do Cristianismo - Annie Besant




a) O Testemunho das Escrituras

Tendo visto que as religiões do passado reivindicaram uníssonas ter um lado oculto, ser custódias de "Mistérios", e que esta reivindicação foi endossada pela busca de Iniciação pelos homens mais eminentes, devemos agora averiguar se o Cristianismo fica fora deste círculo de religiões, sozinho sem uma Gnose, oferecendo ao mundo uma fé simples e não um conhecimento profundo. Se for assim, seria em verdade um fato triste e lamentável, provando ser o Cristianismo apenas destinado a uma só classe, e não a todos os tipos de seres humanos. Mas que isto não é assim, seremos capazes de provar além da possibilidade de dúvida racional.

E esta prova é a coisa que a Cristandade mais urgentemente necessita nestes tempos, pois até a própria flor da Cristandade está perecendo por falta de conhecimento. Se o ensino esotérico puder ser restabelecido e angariar estudantes pacientes e dedicados, não demorará muito para que o lado oculto também seja restaurado. Discípulos dos Mistérios Menores se tornarão candidatos aos Maiores, e com a reobtenção do conhecimento voltará também a autoridade do ensinamento. E de fato a necessidade é grande. Pois, olhando para o mundo em volta de nós, descobrimos que a religião no Ocidente está sofrendo da mesma dificuldade que teoricamente nós deveríamos esperar encontrar. O Cristianismo, tendo perdido seu ensino místico e esotérico, está perdendo terreno entre grande número das pessoas mais altamente educadas, e a revivescência parcial durante os últimos anos é coincidente com a reintrodução de alguns ensinamentos místicos. É patente para todo estudante nos últimos 40 anos do século passado (o século XIX), que multidões de pessoas inteligentes e de alta moralidade tenham se desviado para fora das igrejas, porque os ensinamentos que recebiam lá ultrajavam sua inteligência e chocavam seu senso moral. É inútil pretender que o agnosticismo disseminado deste período tenha suas raízes seja na falta de moralidade ou na deliberada perversidade de mente. Qualquer um que estudar com cuidado o fenômeno logo admitirá que homens de poderoso intelecto foram levados para fora do Cristianismo pela crueza das idéias religiosas apresentadas, as contradições nos ensinamentos das autoridades, nas concepções sobre Deus, o homem e o universo, que nenhuma inteligência treinada poderia chegar a admitir. Nem pode ser dito que qualquer tipo de degradação moral esteja na raiz da revolta contra os dogmas da Igreja. Os rebeldes não eram ruins demais para a sua religião. Ao contrário, foi a religião que ficou ruim demais para eles. A rebelião contra o Cristianismo popular foi devida ao despertar e crescimento da consciência; foi a consciência que se revoltou, assim como a inteligência, contra ensinamentos desonrosos tanto para Deus quanto para o homem, que representavam Deus como um tirano, e o homem como sendo essencialmente mau, obtendo a salvação por submissão escrava.

A razão para esta revolta jaz no gradual rebaixamento do ensinamento Cristão para uma alegada simplicidade, para que o mais ignorante pudesse ser capaz de compreendê-lo. Os religiosos Protestantes assertaram sonoramente que nada deveria ser pregado exceto aquilo que pudesse ser compreendido, que a glória do Evangelho está em sua simplicidade, e que a criança e o inculto deveriam ser capazes de entendê-lo e aplicá-lo à vida. Bastante verdadeiro, se com isto se quisesse dizer que existem algumas verdades religiosas que todos podem entender, e que a religião falha se deixa o mais inferior, o mais ignorante, o mais estúpido, de fora de sua influência elevadora. Mas falso, completamente falso, se com isso se quiser dizer que a religião não tem verdades que o ignorante não possa compreender, que é uma coisa tão pobre e limitada a ponto de não ter nada para ensinar que esteja acima do pensamento do não inteligente ou acima do nível moral do degradado. Falso, fatalmente falso, se este for seu sentido; pois à medida que esta visão se espalha, ocupando os púlpitos e sendo proclamada nas igrejas, muitos homens e mulheres nobres, cujos corações quase se partem quando rompem sua ligação que os une à sua antiga fé, saem das igrejas, e deixam seus lugares ser preenchidos pelos hipócrita e pelo ignorante. Eles ou passam para um estado de agnosticismo passivo, ou - se são jovens e entusiastas - para uma condição de agressão ativa, não acreditando que aquilo que poderia ser a coisa mais elevada ultraje tanto o intelecto como a consciência, e preferem a honestidade de uma descrença aberta ao embotamento do intelecto e da consciência sob imposição de uma autoridade em quem não reconhecem nada que seja divino.

Neste estudo do pensamento de nosso tempo vemos que a questão de um ensinamento oculto em conexão com o Cristianismo se torna de importância vital. O Cristianismo há de sobreviver como a religião do Ocidente? Viverá através dos séculos futuros, e continuará a ter uma parte na formação do pensamento das raças ocidentais em evolução? Se há de viver, deve recuperar o conhecimento que perdeu, e ter de novo seus místicos e seus ensinamentos ocultos; deve mais uma vez colocar-se como uma autoridade ensinando as verdades espirituais, revestido da única autoridade que vale alguma coisa, a autoridade do conhecimento. Se estes ensinamentos forem recuperados, sua influência logo será vista nas novas e mais amplas concepções da verdade; dogmas, que agora parecem apenas meras cascas e plumas, deverão novamente ser apresentações de partes das realidades fundamentais. Em primeiro lugar, o Cristianismo reaparecerá no "Lugar Santo", no Templo, de modo que todos que sejam capazes de receber suas linhas de pensamento divulgado em público; e em segundo lugar, o Cristianismo Oculto descerá outra vez ao Ádito, residindo detrás do véu que guarda o "Santo dos Santos", para dentro do qual só os Iniciados podem passar. Então novamente o ensinamento oculto estará ao alcance daqueles que se qualificarem para recebê-lo, de acordo com as antigas regras, aqueles que desejam nos dias de hoje enfrentar as antigas exigências, feitas a todos os que hão de alegrar-se em conhecer a realidade e a verdade das coisas espirituais.

Mais uma vez voltemos nossos olhos para a história, para vermos se o Cristianismo foi único entre as religiões em não possuir nenhum conhecimento interno, ou se assemelhou-se a todas as outras possuindo este tesouro oculto. Este problema é uma questão de evidência, não de teoria, e deve ser decidido pela autoridade dos documentos existentes e não pelo mero "assim se diz" dos Cristãos modernos.

É fato que tanto o Novo Testamento e os escritos da Igreja Primitiva fazem as mesmas declarações sobre a posse de tais ensinamentos pela Igreja, e sabemos a partir deles do fato da existência dos Mistérios - chamados Mistérios de Jesus, ou Mistério do Reino -, das condições impostas aos candidatos, algo da natureza geral dos ensinamentos dados, e outros detalhes. Certas passagens no Novo Testamento ficariam inteiramente obscuras, não fosse pela luz lançada neles pelas declarações definidas dos Padres e Bispos da Igreja, mas debaixo daquela luz elas se tornam claras e inteligíveis.

Teria na verdade sido estranho se fosse diferente, quando consideramos as linhas do pensamento religioso que influenciaram o Cristianismo primitivo. Aliado aos hebreus, os persas, os gregos, tinto pelos antigos credos da Índia, profundamente colorido pelo pensamento sírio e egípcio, este último ramo do grande tronco religioso não poderia fazer outra coisa senão reafirmar as antigas tradições, colocando ao alcance das raças ocidentais todo o tesouro das tradições antigas. "A fé antigamente confiada aos Santos" teria na verdade sido esvaziada deste valor principal se, quando transmitida para o Ocidente, a pérola do ensinamento esotérico tivesse sido escamoteada.


A primeira evidência a ser examinada é a do Novo Testamento. Para nossos propósitos podemos colocar de lado todas as enfadonhas questões das diferentes redações e dos diferentes autores, que só podem ser julgadas por eruditos. A erudição crítica tem muito a dizer sobre a idade dos manuscritos, sobre a autenticidade dos documentos, e assim por diante. Podemos aceitar as Escrituras canônicas como demonstração do que era acreditado na Igreja Primitiva a respeito do ensino de Cristo e de Seus seguidores imediatos, e ver o que elas dizem sobre a existência de um ensinamento secreto transmitido somente a uns poucos. Tendo visto as palavras postas na boca do próprio Jesus, e consideradas pela Igreja como de suprema autoridade, olharemos para os escritos do grande apóstolo São Paulo; então consideraremos as declarações feitas por aqueles que herdaram a tradição apostólica e guiaram a Igreja durante os primeiros séculos. Ao longo desta ininterrupta linha de tradição e testemunho escrito pode ser estabelecida a proposição de que o Cristianismo tinha um lado oculto. Veremos ainda que os Mistérios Menores de interpretação mística podem ser acompanhados através dos séculos até o início do século XIX, e que embora já não houvesse Escolas de Misticismo reconhecidas como preparatórias para a iniciação depois do desaparecimento dos Mistérios, ainda assim grandes Místicos, de tempos em tempos, alcançaram os degraus inferiores do êxtase por seus próprios esforços contínuos, auxiliados sem dúvida pelos Instrutores invisíveis.

As palavras do próprio Mestre são claras e definidas, e foram, como veremos, citadas por Orígenes como referentes ao ensinamento secreto preservado na Igreja. "E quando estava sozinho, aqueles que estavam com Ele, os doze, faziam-Lhe perguntas sobre as parábolas. E Ele lhes disse: 'A vós é dado conhecer o mistério do Reino de Deus, mas a eles que estão de fora, todas estas coisas são dadas em parábolas' ". E mais adiante: "Com muitas parábolas semelhantes Ele pregava a palavra à multidão, pois só assim podiam ouvir. Mas sem parábolas Ele não lhes falava; e quando eles estavam sozinhos Ele explicava todas as coisas aos Seus discípulos" (Marcos, IV, 10, 11, 33, 34. Vide também Mateus, XIII, 11, 34, 36, e Lucas, VIII, 10). Percebam as significativas palavras "quando estavam sozinhos", e a frase "aqueles que estão de fora". Também na versão de São Mateus: "Jesus despediu a multidão, e entrou na casa; e Seus discípulos foram com Ele". Estes ensinamentos dados "na casa", os significados mais recônditos de Suas instruções, considera-se que eram transmitidos de instrutor a instrutor. O Evangelho dá, note-se, as explicações místicas alegóricas, aquilo que chamamos Os Mistérios Menores, mas o significado mais profundo diz-se ter sido dado somente aos iniciados.

Novamente, Jesus diz até mesmo aos Seus apóstolos: "Eu ainda tenho muitas coisas para vos dizer, mas ainda não sois capazes de as receber" (João, XVI, 12). Algumas delas provavelmente foram ditas depois de Sua morte, quando Ele foi visto pelos discípulos "falando das coisas pertencentes ao Reino de Deus" (Atos, 1, 3). Nenhuma delas foi registrada publicamente, mas quem pode acreditar que foram deixadas de lado ou esquecidas, e não preservadas como algo inestimável? Havia uma tradição na Igreja que Ele visitou Seus apóstolos durante um considerável período após Sua morte, para dar-lhes instrução - um fato a que faremos menção mais tarde - e no famoso tratado Gnóstico Pistis Sophia, lemos: "chegou-se a dizer que, depois de ressuscitar dos mortos, Jesus passou onze anos falando com Seus discípulos e instruindo-os" (loc. cit., trad. G.R.S. Mead, I, I, 1). Então vem a frase, que muitos gostam de amenizar e explicar evasivamente: "Não deis o que é santo aos cães, nem lanceis vossas pérolas ao porcos" (Mateus, VII, 6) - um preceito que é de aplicação geral, na verdade, mas foi considerado pela Igreja Primitiva referir-se aos ensinamentos secretos. 


Deveria ser lembrado que as palavras não tinham a mesma dureza naqueles dias como têm agora, pois a palavra "cães" - significando o vulgo, o profano - era aplicada por aqueles de um determinado círculo a todos os que eram de fora de seu grupo, seja por uma sociedade ou associação, ou por uma nação - como pelos Judeus a respeito dos Gentios (assim como sobre as mulheres gregas: "Não é lícito tirar o pão das crianças e jogá-lo para os cães" - Marcos, VII, 27). Algumas vezes era usada para designar aqueles que estavam fora do círculo dos Iniciados, e a encontramos aplicada neste sentido na Igreja Primitiva; aqueles que, não tendo sido iniciados nos Mistérios, eram considerados como fora do "Reino de Deus", ou da "Israel espiritual", e tinham este nome aplicado a eles.

Havia diversos nomes, além do termo "O Mistério", ou "Os Mistérios", usados para designar o círculo sagrado de Iniciados ou ligados à Iniciação: "O Reino". "O Reino de Deus", O Reino dos Céus", A Vereda Estreita", "A Porta Estreita", "O Perfeito", "O Salvo", "Vida Eterna", "Vida", "O Segundo Nascimento", "O Pequenino", "A Criancinha". O significado é tornado claro pelo uso destas palavras nos primeiros escritos Cristãos, e em alguns casos fora do círculo Cristão. Assim, o termo "O Perfeito" era usado pelos Essênios, que tinham três graus em suas comunidades: os Neófitos, os Irmãos, e os Perfeitos - sendo estes os Iniciados; e é empregado geralmente neste sentido nos antigos escritos. "A Criancinha" era o nome comum para um candidato recém iniciado, isto é, aquele que recém teve seu "segundo nascimento".

Quando passamos a conhecer este uso, muitas passagens de outro modo obscuras e rudes se tornam inteligíveis. "Então um disse-lhe: Senhor, serão poucos os salvos? E Ele respondeu-lhes: Esforçai-vos para entrar pela porta estreita; pois digo-vos, muitos procurarão entrar e não serão capazes" (Lucas, XIII, 23, 24). Se isto for aplicado, do modo Protestante usual, à salvação do fogo eterno do inferno, a afirmação se torna incrível, chocante. Não se pode supor que nenhum Salvador do mundo possa afirmar que muitos procurarão evitar o inferno e entrar no céu, mas não serão capazes de fazê-lo. Mas se aplicado à estreita porta de entrada na Iniciação e sua conseqüente salvação do renascimento, é perfeitamente verdadeiro e natural. E novamente: "Entrai pela porta estreita; pois larga é a porta e amplo é o caminho que conduz à destruição, e muitos serão os que andarão neles; porque estreita é a porta e apertado é o caminho que conduz à vida; e poucos o encontrarão" (Mateus, VII, 13, 14). A advertência que se segue imediatamente contra os falsos profetas, os mestres dos Mistérios tenebrosos, é muito própria em relação a aquilo. Nenhum estudante pode esquecer o som familiar destas palavras usadas no mesmo sentido em outras passagens. A "antiga vereda estreita" é familiar a todos; a senda "tão difícil de trilhar como se fosse o fio de uma navalha" (Kathopanishad, II, IV, 10, 11) já mencionado; a perambulação "de morte em morte" daqueles que seguem o florido caminho dos desejos, daqueles que não conhecem Deus; pois só se tornam imortais e escapam da bocarra da morte, da repetida destruição, aqueles homens que eliminaram todos os desejos (Brhadâranyakopanishad, IV, IV, 7). A alusão á morte, é claro, é feita aos repetidos nascimentos da alma na existência material grosseira, considerada sempre como "morte" quando comparada à "vida" dos mundos mais elevados e sutis.

Esta "Porta Estreita" era o portal da Iniciação, através dele o candidato entrava no "Reino". E sempre foi e deve ser verdadeiro que somente uns poucos podem passar por aquele portal, embora miríades - uma excepcionalmente "grande multitude, que ninguém poderia contar" (Apocalipse, VII, 9), e não uns poucos - adentrem a felicidade do mundo celeste. Assim também falou um outro grande Instrutor, há quase três mil anos atrás: "Dentre milhares de homens talvez só um se esforce pela perfeição; dentre os milhares que a obtém talvez só um Me conheça em essência" (Bhagavad Gita, VII, 3). Pois são poucos os Iniciados em cada geração, são a flor da humanidade; mas nenhuma frase terrível de condenação eterna é pronunciada nesta declaração sobre a vasta maioria da raça humana. Como Proclo ensinou (vide ante, p. 23), os salvos são os que escapam do ciclo da geração, ao qual está atada a humanidade.

Em conexão a isto podemos lembrar da história do jovem que veio a Jesus, e chamando-lhe de "Bom Mestre", perguntou como ele poderia obter a vida eterna - a bem reconhecida liberação dos renascimentos através do conhecimento de Deus (deve ser lembrado que os Judeus acreditavam que todas as almas imperfeitas voltavam para viver novamente na Terra). Sua primeira resposta foi o preceito exotérico usual: "Observa os mandamentos". Mas quando o jovem respondeu: "Todas estas coisas eu tenho observado desde minha juventude", então, para aquela consciência livre de toda a transgressão, veio a resposta do verdadeiro Mestre: "Se queres ser perfeito, vai e vende tudo o que tens, e dá aos pobres, e terás um tesouro nos céus, depois vem e segue-Me". "Se queres ser perfeito", ser um membro do reino, devem ser abraçadas a pobreza e a obediência. E então para os seus próprios discípulos Jesus explica que dificilmente um homem rico pode entrar no Reino dos Céus, sendo tal entrada mais difícil que um camelo passar pelo buraco de uma agulha; pelos homens esta entrada não poderia ocorrer, por Deus todas as coisas são possíveis (Mateus, XIX, 16-26). Somente Deus no homem pode ultrapassar aquela barreira. Este texto tem sido explicado de várias maneiras, sendo obviamente impossível conseguí-lo tomando seu significado superficial, que um homem rico não pode entrar em um estado de felicidade pós-morte. Neste estado entram tanto o rico como o pobre, e as práticas universais dos Cristãos mostram que eles nem por um momento acreditam que a riqueza impeça sua felicidade após a morte. Mas se o significado real de "Reino dos Céus" for aplicado, temos a expressão de um fato simples e direto. Pois aquele conhecimento de Deus que é Vida Eterna (João, XVII, 3) não pode ser obtido até que tudo o que for terreno seja abandonado, não pode ser aprendido até que tudo tenha sido sacrificado. O homem deve desistir não só da riqueza terrena, que daí em diante pode passa por suas mãos só para administrá-la, mas ele deve desistir também de sua riqueza interna, até onde ele a guardar como sua contra o mundo; antes que ele seja desnudado não poderá passar pela porta estreita. Este tem sido sempre um requisito para a Iniciação, e o voto do candidato tem sido sempre "pobreza, obediência, castidade".

O "segundo nascimento" é um outro termo bem conhecido para Iniciação; mesmo hoje na Índia as castas mais elevadas são chamadas "duas vezes nascidas", e a cerimônia que os torna duas vezes nascidos é uma cerimônia de Iniciação - na verdade mera simulação, nos dias de hoje, mas segue "o padrão das coisas que está no céu" (Hebreus, IX, 23). Quando Jesus está se dirigindo a Nicodemos, Ele fala que "a não ser que um homem nasça duas vezes, não pode ver o Reino de Deus", e este nascimento é dito como sendo aquele "da água do Espírito" (João, III, 3, 5); esta é a primeira Iniciação; uma ulterior é a "do Espirito Santo e do fogo" (Mateus, III, 11), o batismo do Iniciado em sua maturidade, assim como a primeira é a do nascimento, que o recebe como "uma Criancinha" que entra no Reino (ibid., XVIII, 3). Quão totalmente familiares eram estas imagens entre os místicos dos Judeus é indicado pela surpresa demonstrada por Jesus quando Nicodemos se embaraçava com Sua fraseologia mística: "Tu és um mestre de Israel e não conheces estas coisas?" (João, III, 10).

Um outro preceito de Jesus que permanece como "um ditado rude" para seus seguidores é: "Sêde perfeitos, assim como vosso Pai no céu é perfeito" (Mateus, V, 48). O Cristão comum sabe que possivelmente não conseguirá obedecer a este mandamento; cheio como está com as fragilidades e fraquezas humanas, como poderá ser perfeito como Deus é perfeito? Vendo a impossibilidade da meta posta diante dele, ele discretamente a põe de lado, e não pensa mais nisso. Mas vista como o esforço coroador de muitas vidas de melhoras constantes, como o triunfo do Deus interno sobre a natureza inferior, a meta parece então dentro do alcance, e lembramos as palavras de Porfírio, sobre como o homem que atinge as "virtudes paradigmáticas é o Pai dos Deuses" (vide ante, p. 24) e que nos Mistérios aquelas virtudes são adquiridas.

São Paulo segue nas pegadas de seu Mestre, e fala exatamente do mesmo sentido, mas com uma explicitude e clareza maiores, como poderia ser esperado a partir de seu trabalho organizador na Igreja. O estudante deveria ler com atenção os capítulos II e III, e o versículo 1 do capítulo V da Primeira Epístola aos Coríntios, lembrando, à medida que lê, que as palavras são endereçadas aos membros batizados e comungantes da Igreja, membros plenos no sentido moderno, embora, descritos como bebês e carnais pelo Apóstolo. Eles não eram catecúmenos ou neófitos, mas homens e mulheres que estava em plena posse de todos os privilégios e responsabilidades como membros da Igreja, reconhecidos pelo Apóstolo como estando apartados do mundo, e dos quais não esperava que se portassem como homens do mundo. Eles estavam, de fato, de posse de tudo o que a Igreja moderna dá aos seus membros. Resumamos as palavras do Apóstolo:

"Eu venho a vós trazendo o testemunho divino, e não vos enganando com sabedoria humana, mas venho com o poder do Espírito. Em verdade 'falamos sabedoria entre os que são perfeitos, mas não é sabedoria humana'. Falamos da sabedoria de Deus em mistério, mesmo a sabedoria oculta, que Deus ordenou antes que o mundo existisse, a qual nem os príncipes deste mundo conhecem. As coisas daquela sabedoria estão além do entendimento dos homens, 'mas Deus as revela a eles por Seu Espírito... as coisas íntimas de Deus', 'ensinadas pelo Espírito Santo' (Note-se como isto se alinha com a promessa de Jesus em João, XVI, 12-14: "Eu tenho ainda muitas coisas a vos dizer, mas ainda não as podeis suportar. Porém quando Ele, o Espírito da Verdade, vier, Ele vos guiará em toda a verdade... Ele vos mostrará as coisas do porvir... Ele as receberá de Mim e as mostrará a vós"). Estas são coisas espirituais, a serem discernidas somente pelos homens espirituais, em quem está a mente de Cristo. 'E Eu, irmãos, não vos poderia falar como falo aos espirituais, mas falo como aos carnais até mesmo para os bebês em Cristo... Eles não eram capazes de o suportar, como vós não o suportaríeis ainda. Pois sois ainda carnais'. Como um mestre-construtor [um outro termo técnico nos Mistérios] Eu deixei as fundações' e 'vós sois o Templo de Deus, e o Espírito de Deus habita em vós'. 'Que um homem nos considere assim, como ministros de Cristo, e guardiães dos Mistérios de Deus' ".

Alguém pode ler esta passagem - e tudo o que foi dito no resumo é para enfatizar os pontos importantes - sem reconhecer o fato de que o Apóstolo possuía uma sabedoria divina dada nos Mistérios, que seus seguidores coríntios ainda não eram capazes de receber? E notem a recorrência de termos técnicos: a "sabedoria", a "sabedoria de Deus em mistério", a "sabedoria oculta", conhecida somente pelos homens "espirituais", falada somente entre os "perfeitos", sabedoria da qual eram excluídos os não-"espirituais", os "bebês em Cristo", e só conhecida dos "mestres construtores", os "guardiães dos Mistérios de Deus".


Repetidas vezes ele se refere a estes Mistérios. Escrevendo aos Cristãos de Éfeso ele diz que "pela revelação", pelo desvelamento, tinha sido feito "sabedor dos Mistérios", e daí seu "conhecimento dos mistérios de Cristo"; todos podiam saber sobre a "irmandade dos Mistérios" (Efésios, III, 3, 4, 9). Sobre este Mistério, ele repete aos colossenses que foi "feito ministro", "o Mistério que esteve ocultos das idades e das gerações, mas que agora era tornado manifesto aos Seus santos"; não ao mundo, nem mesmo aos Cristãos, mas somente aos Santos. Para eles era revelada "a glória deste Mistério"; e o que era isso? "Cristo em vós" - uma frase significativa, que veremos, logo, pertencer à vida do Iniciado; assim finalmente todo homem deve aprender a sabedoria, e se tornar "perfeito em Cristo Jesus" (Colossenses, i, 23, 25-28. Mas São Clemente, em seu Stromata, traduz "todo homem" como "o homem todo". Vide o Livro V, cap. X). A estes Colossenses ele ordena orar "para que Deus nos abra aporta da profecia, para falar o Mistério de Cristo" (Colossenses, IV, 3), uma passagem à qual São Clemente se refere como sendo uma em que o Apóstolo "revela claramente que o conhecimento não pertence a todos" (Clemente de Alexandria, Stromata, Livro V, cap. X; A.-N.C.L. Alguns ditos adicionais dos Apóstolos serão encontrados nas citações de Clemente, mostrando qual significado tinham para as mentes daqueles que sucederam os Apóstolos, e que viviam na mesma atmosfera de pensamento). Da mesma forma também escreve ao seu bem-amado Timóteo, ordenando-lhe selecionar seus diáconos dentre aqueles que "mantinham o Mistério da fé em uma consciência pura", aquele "grande Mistério da Piedade", que ele havia aprendido (I Timóteo, III, 9, 16), cujo conhecimento era necessário para os instrutores da Igreja.


Porém São Timóteo está em uma posição importante como representante da geração seguinte de instrutores Cristãos. Ele foi discípulo de São Paulo, e foi indicado por ele para guiar e dirigir uma porção da Igreja. Ele havia sido, sabemos, iniciado nos Mistérios pelo próprio São Paulo, e é feita referência a isto, e os termos técnicos mais uma vez servem como chave. "Esta função te delego, meu filho Timóteo, de acordo com as profecias que foram feitas sobre ti" (I Timóteo, I, 18), a bênção solene do Iniciador, que admitia o candidato; mas o Iniciador não estava sozinho: "Não descureis o dom que está em vós, o qual vos foi dado pela profecia, abandonando o Presbitério" (ibid., IV, 14) dos Irmãos Maiores. E ele lhe adverte preservar aquela "vida eterna, à qual também fostes chamado, e professastes um bom voto diante de muitas testemunhas" (ibid., VI, 13) - o voto do novo Iniciado prestado na presença dos Irmãos Maiores e da assembléia dos Iniciados. O conhecimento dado então era a incumbência sagrada sobre a qual São Paulo fazia tanta ênfase: "Oh Timóteo, preserva aquilo que te foi confiado" (Ibid. 20) - e não o conhecimento comumente possuído pelos Cristãos, a respeito do qual não havia obrigação nenhuma sobre São Timóteo, mas o depósito sagrado confiado a ele como Iniciado, e essencial ao bem da Igreja. São Paulo mais tarde volta a isto, enfatizando a suprema importância do assunto de um modo que teria sido exagerado se o conhecimento fosse a propriedade comum dos homens Cristãos: "Guarda bem a forma das sérias palavras que ouvistes de mim... Aquela boa coisa que te foi confiada, guarda-a pelo Espírito Santo que reside em nós" (II Timóteo, I, 13,14) - uma adjuração tão séria quanto seria possível por lábios humanos. Mais ainda, era seu dever prover a devida transmissão deste depósito sagrado, para que pudesse transmitido ao futuro, e a Igreja nunca fosse deixada sem Instrutores: "As coisas que ouvistes de mim entre muitas testemunhas" - os ensinamentos orais sagrados dados na assembléia dos Iniciados, que testemunhava a precisão da transmissão - "confia o mesmo a homens dignos, que sejam também capazes de ensinar aos outros" (Ibid., II, 2).


O conhecimento - ou, se preferirmos o termo, a suposição - de que a Igreja possuía estes ensinamentos ocultos lança uma torrente de luz sobre estas diversas passagens de São Paulo sobre si mesmo, e quando as reunimos, temos um perfil da evolução do Iniciado. São Paulo diz que embora ele já estivesse entre os perfeitos, os Iniciados - pois ele diz: "Que nós, portanto, que somos perfeitos, tenhamos esta mentalidade" - ele ainda não tinha "atingido", ainda não era em verdade inteiramente "perfeito", pois ainda não havia recebido Cristo, ele ainda não havia atingido o "alto chamado de Deus em Cristo", "o poder de Sua ressurreição, e a companhia de Seus sofrimentos, sendo tornado conforme à Sua morte"; e ele estava tentando, diz, "se por algum meio puder alcançar a ressurreição dos mortos" (Filipenses, III, 8, 10-12, 14, 15). Pois esta era a Iniciação que libertava, que fazia do Iniciado um Mestre perfeito, o Cristo Ressurrecto, libertando-o finalmente dos "mortos", da humanidade presa ao ciclo da geração, dos laços que atavam a alma à matéria grosseira. Novamente aqui temos um número de termos técnicos, e mesmo o leitor superficial deveria perceber que a "ressurreição dos mortos" mencionada aqui não poderia ser a ressurreição comum dos modernos Cristãos, suposta ser inevitável para todos os homens, e portanto não requerendo obviamente nenhuma luta especial da parte de ninguém para conseguí-la. De fato a própria palavra "conseguir" estaria fora de lugar ao referir-se a uma experiência humana universal e inevitável. São Paulo não poderia evitar esta ressurreição, de acordo com o ponto de vista dos Cristãos modernos. Qual seria então a ressurreição a ser conseguida para a qual ele estava fazendo tão estrênuos esforços? Uma vez mais a única resposta vem dos Mistérios. Neles o Iniciado se aproximava da Iniciação que libertava do ciclo do renascimento, o ciclo da geração, era chamado de "o Cristo sofredor", ele compartilhava dos sofrimentos do Salvador do mundo, era crucificado misticamente, "tornado conforme à Sua morte", e então conseguia a ressurreição, a companhia do Cristo glorificado, e, depois, a morte já não tinha poder sobre ele (Apocalipse, i, 18. "Eu sou Aquele que vive, esteve morto e ressurgiu, e vive eternamente. Amen"). Este era o "prêmio" em direção ao qual o Apóstolo estava se esforçando, e ele urge "todos os que são perfeitos", não o crente comum, para que também se esforcem deste modo. Que não se contentem com o que já obtiveram até então, mas que se esforcem por mais. 

 
Esta semelhança com Cristo do Iniciado, de fato, é o próprio trabalho dos Mistérios Maiores, como veremos em maior detalhe quando estudarmos "O Cristo Místico". O Iniciado já não devia ver o Cristo como fora de si mesmo. "Embora tenhamos conhecido o Cristo na carne, deste modo já não o conhecemos" (II Coríntios, V, 16).

O crente comum havia sido "revestido de Cristo, assim como todos de vós que fostes batizados em Cristo se revestiram de Cristo" (Gálatas, III, 27). Então eles se tronavam os "bebês em Cristo", a quem já se fez referência, e Cristo era o Salvador de quem eles buscavam ajuda, conhecendo-O "na carne". Mas quando eles haviam vencido a natureza inferior e já não eram "carnais", então eles entrariam em um caminho mais elevado, e se tornariam eles mesmo Cristo. Isto que ele mesmo já havia conseguido era o desejo do Apóstolo para os seus seguidores. "Meus filhos, de quem sofro as dores do parto até que Cristo seja formado em vós" (Gálatas, IV, 19). Ele já era seu pai espiritual, "tendo-vos gerado através do evangelho" (I Coríntios, IV, 15). Mas agora ele era como aquele que gera "novamente", como se fosse sua mãe para levá-los ao segundo nascimento. Então o Cristo Infante, a Santa Criança, nascia na alma, "o homem oculto no coração" (I Pedro, III, 4), e o Iniciado se tornava assim "a Criancinha"; daí por diante ele devia viver em sua pessoa a vida do Cristo, até que se trinasse o "homem perfeito", crescendo "até a medida da plena estatura de Cristo" (Efésios, IV, 13). Então ele, como São Paulo estava fazendo, repetia em sua própria carne os sofrimentos de Cristo (Colossenses, I, 24) e sempre tinha "junto a si a morte do Senhor Jesus", para que pudesse dizer com verdade "sou crucificado com Cristo; não obstante eu vivo; embora não seja eu, mas é Cristo que vive em mim" (Gálatas, II, 20). Assim o Apóstolo estava ele mesmo sofrendo; assim ele descrevia si próprio. E quando a luta termina, quão diferente é o tom calmo de triunfo sobre árduos esforços dos primeiros anos: "Agora estou pronto para ser oferecido, e o tempo de minha partida está próximo. Eu lutei a boa luta, terminei minha carreira, guardei a fé; por isso me espera uma coroa de justiça" (II Timóteo, IV, 6-8). Esta era a coroa dada " a ele que vencera", de quem é dito pelo Cristo Ressurrecto: "Eu farei dele um pilar no Templo de meu Deus; e dali não sairá mais" (Apocalipse, III, 12). Pois após a "Ressurreição" o Iniciado se tornava o Homem Perfeito, o Mestre, e já não sai do Templo, mas dali serve e guia os mundos.
Pode ser bom assinalar, antes de encerarmos este capítulo, que o próprio São Paulo sanciona o uso do ensinamento teórico místico na explicação dos eventos históricos registrados nas escrituras. A história escrita ali não é considerada por ele um mero registro de fatos, que ocorreram no plano físico. Verdadeiro místico, ele via nos eventos físicos as sombras das verdades universais sempre ocorrendo nos mundos mais altos e internos, e sabia que os eventos escolhidos para serem preservados nos escritos ocultos eram aqueles mais típicos, cuja explicação serviria à instrução humana. Assim ele toma a história de Abraão, Sarai, Hagar, Ismael e Isaac, e dizendo que "aquelas coisas são alegorias", ele passa a dar a interpretação mística (Gálatas, IV, 22-31). Referindo-se à fuga dos israelitas do Egito, ele fala do Mar Vermelho como um batismo, do maná e da água como comida e bebida espirituais, da rocha de onde a água fluiu como sendo o Cristo (I Coríntios, X, 1-4). Ele vê o grande mistério da união de Cristo com Sua Igreja na relação de marido e mulher, e fala dos Cristãos como sendo a carne e os ossos do corpo de Cristo (Efésios, V, 23-32). O autor desta Epístola aos Hebreus alegoriza todo o sistema de culto Judeu. No Templo ele vê um espelho do Templo celeste, no Sumo Sacerdote ele vê Cristo, nos sacrifícios vê a doação do Filho imaculado; os sacerdotes do Templo não passam de "exemplos e sombras das coisas celestes", do sacerdócio celeste servindo no "verdadeiro tabernáculo". Uma alegoria muito elaborada é assim desenvolvida nos capítulos III a X, e o escritor alega que o Espírito Santo significava assim o sentido mais profundo; tudo era "uma imagem para esta época".

Nesta visão dos escritos sagrados não é alegado que os eventos registrados não tenham tido lugar, mas apenas que sua ocorrência física era coisa de menor importância. Uma explicação como esta é o desvelar dos Mistérios Menores, o ensinamento místico que é permitido dar ao mundo. Não é, como muitos imaginam, um mero jogo de imaginação, mas é a atividade de uma verdadeira intuição, vendo os protótipos nos céus, e não somente as sombras lançadas por eles na tela do tempo terreno.



b) O Testemunho da Igreja

Enquanto possa ocorrer que alguns estejam querendo admitir a posse pelo Apóstolo e seus sucessores imediatos de um conhecimento das coisas espirituais mais profundo do que o que era corrente entre as massas dos crentes em seu redor, poucos provavelmente desejarão dar o próximo passo, e, deixando este círculo enfeitiçado, aceitar os Mistérios da Igreja Primitiva como o depositário de seus ensinamentos sagrados. Mesmo que tenhamos São Paulo fazendo os preparativos para a transmissão do ensino não escrito, iniciando ele mesmo a São Timóteo, e instruindo São Timóteo para que por sua vez iniciasse outros, os quais o dariam a ainda outros, depois deles. Vemos assim um arranjo de quatro gerações sucessivas de instrutores, citadas nas mesmas Escrituras, e eles com muita folga sobrepujariam os escritores da Igreja Primitiva que testemunham a existência dos Mistérios. Pois entre eles há discípulos dos próprios Apóstolos, embora as declarações mais definitivas sejam daqueles afastados dos Apóstolos por um instrutor intermediário. Porém, assim que iniciamos o estudo dos escritos da Igreja Primitiva, se nos deparam os fatos de que existem alusões que são inteligíveis apenas considerando a existência dos Mistérios, e depois declarações de que os Mistérios realmente existem. Isto poderia, é claro, ser esperado, analisando as condições em que o Novo Testamento deixa o assunto, mas causa satisfação descobrir que os fatos correspondem às expectativas.

As primeiras testemunhas são aqueles chamados Padres Apostólicos, os discípulos dos Apóstolos; mas demasiado pouco subsiste de seus escritos, e mesmo o que resta é questionado. Quando não são escritas controversamente, as declarações não são tão categóricas como as dos escritores posteriores. Suas cartas são para o encorajamento dos crentes. Policarpo, Bispo de Smirna, e, juntamente com Inácio, discípulo de São João (The Martyrdom of Ignatius, vol. I, cap. III - Os texto utilizados provêm da Ante-Nicene Christian Library, de Clarke, um utilíssimo compêndio de antigüidades Cristãs. O número do volume é o seu número na série), expressa a esperança de que seus correspondentes sejam "bem versados nas sagradas Escrituras e que nada lhes seja oculto; mas para mim este privilégio ainda não foi outorgado" (Ibid., The Epistle of Polycarp, cap. XII). - escrevendo, aparentemente, antes de alcançar a Iniciação plena. Barnabé fala em comunicar "alguma porção do que eu mesmo recebi" (Ibid., The Epistle of Barnabas, cap. I) e depois de expor a Lei misticamente, declara que "nós, então, entendendo corretamente Seus mandamentos, os explicamos do modo como o Senhor pretendeu que significassem" (Ibid., cap. X). Inácio, Bispo de Antióquia, um discípulo de São João (Ibid., The Martyrdom of Ignatius, cap. I), fala de si mesmo como "ainda não sendo perfeito em Jesus Cristo. Pois só agora iniciei a ser um discípulo, e falo a vós como a meus condiscípulos" (Ibid., Epistle of Ignatius to the Ephesians, cap. III), e fala deles como "iniciados nos mistérios do Evangelho com Paulo, o santo, o martirizado" (Ibid., cap. XII). Mais uma vez ele diz: "Poderia eu não vos escrever coisas mais cheias de mistério? Mas temo em fazê-lo, podendo prejudicar-vos, a vós que sois apenas bebês. Perdoai-me a este respeito, pois não sendo capazes de receber todo seu peso, seríeis sufocados por elas. Pois mesmo eu, embora ligado (por Cristo) e sendo capaz de entender coisas celestiais, as ordens angélicas, e os diferentes tipos de anjos e hierarquias, a diferença entre tronos e potestades, a grandiosidade dos éons, e a preeminência dos querubins e serafins, a sublimidade do Espírito, o reino do Senhor, e acima de tudo a incomparável majestade de Deus Todo-poderoso - embora eu conheça estas coisas, ainda não sou de modo algum perfeito, nem sou um discípulo da estatura de Paulo ou Pedro" (Ibid., To the Trallians, vol. 2). Esta passagem é interessante, ao indicar que a organização das hierarquias celestes era um dos assuntos sobre os quais era dada instrução nos Mistérios. Novamente ele fala do Sumo Sacerdote, do Hierofante, "a quem foi confiado o Santo dos Santos, e quem sozinho foi informado dos segredos de Deus" (Ibid., To the Philadelphians, cap. IX).


Passamos a seguir para São Clemente de Alexandria e seu discípulo Orígenes, os dois escritores dos séculos II e III que mais nos contam sobre os Mistérios na Igreja Primitiva; embora a atmosfera geral seja cheia de alusões místicas, os dois são claros e categóricos em suas asserções de que os Mistérios eram uma instituição reconhecida.

São Clemente foi um discípulo de Panteno, e fala dele e de dois outros, ditos ser provavelmente Tatiano e Teódoto, como "preservando a tradição da doutrina bendita derivada diretamente dos santos Apóstolos Pedro, Tiago, João e Paulo" (Clemente de Alexandria, Stromata, livro I, cap., I - A.-N.C.L, vol. IV), assim seu elo com os próprios Apóstolos tem apenas um intermediário. Ele foi o diretor da Escola Catequética de Alexandria em 189 dC, e morreu cerca de 220 dC. Orígenes nasceu em torno de 185 dC, foi seu discípulo, e é, talvez, o mais instruído dos Padres, e um homem da mais rara beleza moral. Estas são as testemunhas de quem recebemos o mais importante registro da existência de Mistérios definidos na Igreja Primitiva.

Os Stromata, ou Miscelânea, de São Clemente, são nossa fonte de informação sobre os Mistérios naquela sua época. Ele mesmo fala destes escritos como uma "miscelânea de notas Gnósticas, de acordo com a verdadeira filosofia" (Stromata, livro I, cap. XXVIII - A.-N.C.Lib., vol. IV), e as descreve também como memorandos dos ensinamentos que ele mesmo recebera de Panteno. A passagem é instrutiva: "O Senhor... permitiu-nos comunicar aqueles Divinos Mistérios, e aquela santa luz, àqueles capazes de os receber. Ele certamente não revela à multidão o que não pertence à multidão, mas aos poucos que Ele sabe que lhes pertencem, que são capazes de recebê-los e ser moldados de acordo com eles. Mas coisas secretas são confiadas á voz, e não ao escrito, como é o caso com Deus. E se alguém diz (parece que mesmo naquele tempo havia alguns que objetavam de alguma verdade ser ensinada secretamente!) que está escrito 'Não há nada escrito que não seja revelado, nem oculto que não seja descoberto', que também ouça de nós, que àquele que ouve secretamente, mesmo o que é secreto será manifesto. Isto é o que foi predito por aquele oráculo. E para aquele que é capaz de conservar em segredo o que lhe é transmitido, o que é velado lhe será descoberto como verdade; e o que está oculto da maioria aparecerá manifesto aos poucos... Os Mistérios são confiados misticamente, para o que é falado possa estar na boca do que fala; não em sua voz, mas em seu entendimento... O escrito destes meus memoranda, bem o sei, é fraco quando comparado com aquele espírito, que é cheio de graça, o qual eu tive o privilégio de ouvir. Mas será uma imagem para recordar o arquétipo àquele que foi tocado com o Tirso". O Tirso, podemos assinalar, era a vareta levada pelos Iniciados, e os candidatos eram tocados com ela durante a cerimônia de Iniciação. Tinha uma significação mística, simbolizando a medula espinhal e a glândula pineal nos Mistérios Menores, e um Bastão, conhecido dos Ocultistas, nos Maiores. Dizer, portanto, "àqueles que foram tocados com o Tirso", era exatamente o mesmo que dizer, "àquele que foi iniciado nos Mistérios'. Clemente prossegue: "Nós professamos não explicar coisas secretas suficientemente - longe disto - mas apenas recordá-las à memória, se tivermos esquecido algum detalhe, ou com o intuito de não esquecer. Muitas coisas, sei bem, nos escapam, na da passagem do tempo, e que deixamos de lado sem as escrever... Há coisas então de que não guardamos memória alguma; pois o poder que estava nos homens benditos era grande". Uma experiência freqüente daqueles ensinados pelos Grandes Seres, pois Sua presença estimula e torna ativos poderes que normalmente estão latentes, e que o discípulo, desassistido, não pode evocar. "Também há coisas que permanecem de todo não registradas; que agora nos fogem; e outras que estão confusas, tendo se desvanecido na própria mente, uma vez que tal tarefa não é simples para os inexperientes; estas eu reavivo em meus comentários. Algumas coisas eu omito de propósito, exercitando uma sábia seleção, receando escrever o que eu evitei falar; não para enganar - pois seria errado - mas temendo por meus leitores, para que não tropecem tomando-as num sentido equívoco; e, como diz o ditado, estaríamos 'dando uma espada para uma criança'. Pois é impossível que o que fosse escrito não fosse percebido (se tornasse sabido), assim permanece impublicado por mim. Mas sendo sempre circunspecto, usando apenas uma voz, a do escrito, (as coisas escritas) não respondem nada para aquele que faz perguntas além do que foi escrito; pois elas requerem necessariamente a ajuda de alguém, seja de quem escreveu, ou de outro que seguiu em seus passos. Meu tratado esconde certas coisas; em outras se demora; outras apenas menciona. Ele tenta falar discretamente, exibir secretamente, e demonstrar silenciosamente" (Ibid., livro I, cap. I).

Esta passagem, se apenas ela existisse, seria suficiente para confirmar a existência de um ensinamento secreto na Igreja Primitiva. Mas de modo algum é um espécimen isolado. No capítulo XII do mesmo livro I, sob o título "Os Mistérios da Fé não devem ser divulgados a todos", Clemente declara que, uma vez que outros além do sábio podem chegar a ver sua obra, "é obrigatório portanto ocultar em um Mistério a sabedoria enunciada, que o Filho de Deus ensinou". Língua purificada de quem fala, ouvido purificado de quem ouve, isto era necessário. "Tais foram as restrições no caminho de minha escrita. E mesmo agora eu temo, como se diz, de 'lançar as pérolas aos porcos, para que não as calquem sob seus pés e se voltem contra nós e nos despedacem'. Pois é difícil exibir as palavras realmente puras e transparentes a respeito da verdadeira luz aos ouvidos suínos e destreinados. Pois dificilmente haveria coisas que pudessem ser mais ridículas do que estas para a multidão; nem, por outro lado, qualquer assunto poderia ser mais admirável ou mais inspirador para aqueles de natureza nobre. Mas o sábio não profere com sua boca o que discute em concílio. Mas o que ouvis no ouvido, disse o Senhor, 'proclamai acima das casas', fazendo com que recebam as tradições sagradas do verdadeiro conhecimento, e expondo-as alto e conspicuamente; e já que 'ouvimos no ouvido', então as entregarmos a outros é obrigatório; mas não nos agrada comunicar a todos sem distinção o que lhes é dito em parábolas. Mas só existe um esboço em nossos memoranda, os quais têm a verdade esparsa e difusa, para que possa escapar da atenção daqueles que apanham sementes como gralhas; mas quando elas encontram um homem que as acolhe bem cada uma delas germinará e produzirá grão".

Clemente poderia ter acrescentado que "proclamar acima das casas" era proclamar ou expor na assembléia dos Perfeitos, dos Iniciados, e de modo algum bradá-las para os homens nas ruas.


Novamente ele diz que aqueles que são "ainda cegos e surdos, não tendo entendimento, ou a visão clara e penetrante da alma contemplativa... devem ficar de fora do coro divino... Por conseguinte, em concordância com o método de ocultação, o Verbo verdadeiramente sagrado, verdadeiramente divino e necessário para nós, depositado no escrínio da verdade, era indicado, pelos egípcios, pelo que eles chamavam de adyta, e os Hebreus, de véu. Somente os consagrados... eram autorizados a ter-lhe acesso. Pois Platão também ensinou que não é lícito para 'o impuro tocar no que é puro. Por isso as profecias e oráculos são proferidos em enigmas, e os Mistérios não são exibidos de imediato e em amplitude a todos, mas somente depois de certas purificações e instruções prévias" (Ibid., livro V, cap. IV). Ele então discorre longamente sobre os Símbolos, expondo os Pitagóricos, os Hebreus, Egípcios, e então assinala que o ignorante e o inculto falham em entendê-los. "Mas o Gnóstico compreende. Pois não é desejado que todas as cosias sejam expostas indiscriminada e completamente a todos, nem que os benefícios da sabedoria sejam comunicados àqueles que nem em sonho se purificaram na alma (pois não é permitido entregar a qualquer arrivista o que foi procurado com tantos esforços laboriosos); nem serão expostos ao profano os Mistérios da Palavra". Os Pitagóricos e Platão, Zenão e Aristóteles tinham ensinamentos exotéricos e esotéricos. Os filósofos estabeleceram os Mistérios, pois "não seria mais benéfico para a santa e bendita contemplação das realidades serem ocultas?" (Ibid., cap. IX). Os Apóstolos também aprovavam "o velamento dos Mistérios da Fé". "pois existe uma instrução para os perfeitos", à qual se alude em Colossenses, 9-11 e 25-27. "Tanto é que, por outro lado, então, existem os Mistérios que estavam ocultos até o tempo dos Apóstolos, e foram pregados por eles assim como foram recebidos do Senhor, e, ocultos no Antigo Testamento, foram manifestos aos santos. E, por outro lado, há 'as riquezas da glória do mistérios entre os Gentios', que é a fé e esperança em Cristo; o que em outra parte ele chama de "o fundamento". Ele cita São Paulo para demonstrar que este "conhecimento não pertence a todos", e diz, referindo-se a Hebreus V e VI, que "certamente existem entre os Hebreus algumas coisas transmitidas oralmente"; e então se refere a São Barnabé, que fala de Deus, "que colocou em nossos corações a sabedoria e o entendimento de seus segredos", e diz que "é dado a poucos entender estas coisas", como se apresentando "um traço de tradição Gnóstica". "Portanto a instrução que revela coisas ocultas é chamada de iluminação, assim como é somente o instrutor que levanta a tampa da arca" (Ibid., livro V, cap. X). Referindo-se mais a São Paulo, ele comenta sua declaração em Romanos de que ele "virá na plenitude da bênção de Cristo" (loc. cit., XX, 29), e diz que ele significa com isto "o dom espiritual e a interpretação Gnóstica, que ao estar presente deseja transmitir a eles como 'a plenitude de Cristo, de acordo com a revelação do Mistérios selado nas eras da eternidade, mas agora manifesto pelas Escrituras proféticas' (Ibid., XVI, e 25-26; a versão citada difere em palavras, mas não em sentido, da Edição Inglesa Autorizada)... Mas apenas a uns poucos dentre eles é mostrado o que são estas coisas que o Mistério contém. Corretamente, então, Platão, nas cartas tratando de Deus, diz: 'Devemos nos expressar em enigmas; para que se por qualquer acaso o escrito, por terra ou por mar, cair nas mãos de alguém, este permaneça ignorante" (Stromata, livro V, cap. X).

Depois de muito exame dos escritores gregos, e uma investigação na filosofia, São Clemente declara que a Gnose "transmitida e revelada pelo Filho de Deus é sabedoria... E a Gnose em si é aquilo que continuou pela transmissão a uns poucos, tendo sido transmitida oralmente pelos Apóstolos" (Ibid., livro VI, cap. VII). É feita uma exposição muito alentada da vida do Gnóstico, do Iniciado, e São Clemente a conclui dizendo: "Que isto baste para aqueles que têm ouvidos. Pois não é preciso desvelar o mistério, mas apenas indicar o que baste, para aqueles que são partícipes no conhecimento, para traze-lo de novo à mente" (Ibid., livro VII, cap. XIV).

Considerando a Escritura como consistindo de alegorias e símbolos, e como escondendo o sentido a fim de estimular a indagação e para preservar o ignorante do perigo (ibid., livro VI, cap. XV), São Clemente naturalmente confinou a instrução superior aos mais cultos. "Nosso Gnóstico será profundamente culto" (Ibid., livro VI, cap. X), diz ele. "Pois o Gnóstico deve ser erudito" (ibid., livro VI, cap. VII). Aqueles que adquiriram desenvoltura através de treinamento prévio poderiam dominar o conhecimento mais profundo, pois embora "um homem possa ser um crente sem estudo, também declaramos que é impossível para um homem sem estudo compreender as coisas que são expostas na doutrina" (Ibid., livro I, cap. VI). "Alguns que se imaginam naturalmente dotados não desejam se aproximar da filosofia ou da lógica; antes não desejam aprender a ciência natural. Eles requerem apenas a fé pobre... Assim também eu chamo de verdadeiramente erudito aquele que leva tudo à base da verdade - para que, da geometria, da música, da gramática e da própria filosofia, selecionando o que é útil, preserve a fé contra assaltos. Quão necessário é, para o que deseja compartilhar do conhecimento de Deus, tratar dos assuntos intelectuais através da filosofia" (ibid., cap. IX). "O Gnóstico se vale dos ramos do conhecimento como exercícios preparatórios auxiliares" (Ibid., livro VI, cap. X). Quão longe estava São Clemente de pensar que o ensinamento do Cristianismo devesse ser medido pela ignorância do inculto. "Aquele que é familiarizado com todos os tipos de sabedoria será preeminentemente um Gnóstico" (Ibid., livro I, cap. XIII). Assim enquanto acolhe o ignorante e o pecador, e encontra no Evangelho o que atende às suas necessidades, considera que somente o culto e o puro seriam candidatos adequados para os Mistérios. "O Apóstolo, distintamente da perfeição Gnóstica, chama a fé comum de fundamento, e algumas vezes de leite" (Stromata, vol. XII, livro V, cap. IV), mas sobre aquele fundamento devia ser erguido o edifício da Gnose, e o alimento próprio de homens devia suceder ao dos bebês. Não há nenhuma intolerância ou complacência na distinção que ele faz, mas apenas um calmo e sábio reconhecimento dos factos.

Mesmo o candidato bem preparado, o discípulo culto e treinado, só poderiam esperar avançar passo a passo nas profundas verdades desveladas nos Mistérios. Isto aparece claramente em seus comentários sobre a visão de Hermas, onde ele também dá algumas sugestões sobre o método de ler-se obras ocultas. "Não deu também o Poder, que apareceu a Hermas na Visão, sob a forma da Igreja, para transcrição o livro que ele desejava que fosse conhecido dos eleitos? E isto, ele diz, ele transcreveu ao papel, não sabendo como completar as sílabas. E isto significa que a Escritura é clara para todos, quando tomada ao pé da letra; e que isto é a fé que ocupa o lugar dos rudimentos. Daí é empregada também a expressão figurada 'leitura de acordo com a letra', enquanto que nós entendemos que a interpretação gnóstica das Escrituras, quando a fé chegou a um grau avançado, é comparada com a leitura de acordo com as sílabas... Porém aquilo o Salvador ensinou os Apóstolos, a interpretação oral dos escritos (Escrituras) foi dada também a nós, inscrita pelo poder de Deus nos corações renovados, de acordo com a renovação do livro. Assim aqueles de grande reputação entre os gregos dedicam o fruto da romãzeira a Hermes, a quem chamam de fala, por conta de sua interpretação. Pois a fala oculta muito... Portanto não é apenas àqueles que lêem com simplicidade que a aquisição da verdade é tão difícil, mas a história de Moisés ensina que nem mesmo àqueles cuja prerrogativa é o conhecimento da verdade a sua contemplação é desvelada completamente; assim como os hebreus foram acostumados a contemplar a glória de Moisés, e os profetas de Israel as visões dos anjos, assim também nós nos tornamos capazes de olhar os esplendores da verdade face a face" (Ibid., livro VI, cap. XV).
Poderiam ser dadas ainda outras referências, mas estas serão suficientes para estabelecer o fato de que São Clemente sabia da existência dos Mistérios no seio da Igreja, havia sido iniciado neles, e escreveu para o benefício daqueles que também haviam sido iniciados.

A testemunha seguinte é o discípulo Orígenes, aquela brilhantíssima luz de erudição, coragem, santidade, devoção, brandura e zelo, cujas obras permanecem como minas de ouro onde o estudante pode garimpar os tesouros da sabedoria.

Em sua famosa controvérsia contra Celso, foram feitos ataques ao Cristianismo que suscitaram uma defesa da posição Cristã onde foram feitas freqüentes referências aos ensinamentos secretos (Contra Celsus, livro I. Este livro é encontrado no volume X da A.-N.C.Lib. Os livros restantes estão no volume XXIII).

Celso alegou, como argumento de seu ataque, que o Cristianismo era um sistema secreto, e Orígenes refuta isto dizendo que conquanto certas doutrinas fossem secretas, muitas outras eram públicas, e que este sistema de ensinamentos exotéricos e esotéricos, adotado no Cristianismo, era também de uso geral entre os filósofos. O leitor notará, na passagem abaixo, a distinção feita entre a ressurreição de Jesus, considerada sob uma luz histórica, e o "mistério da ressurreição":


"Acima de tudo, uma vez que ele (Celso) freqüentemente chama a doutrina Cristã de sistema secreto (de fé), devemos confutá-lo também neste ponto, uma vez que quase todo o mundo está mais familiarizado com aquilo que os Cristãos pregam do que com as opiniões favoritas dos filósofos. Pois quem desconhece a declaração de que Jesus nasceu de uma virgem, e que foi crucificado, e que Sua ressurreição é um artigo de fé, e que é esperado um juízo final, no qual os maus serão punidos de acordo com suas faltas, e os justos serão devidamente recompensados? Mesmo assim, o Mistério da ressurreição, não sendo compreendido, é feito objeto de ridículo entre os descrentes. Nestas circunstâncias, falar da doutrina Cristã como sendo um sistema secreto é um completo absurdo. Mas que deva haver certas doutrinas, não descobertas à multidão, que o são depois que o profano é ensinado, não é uma peculiaridade apenas do Cristianismo, mas também de sistemas filosóficos nos quais certas verdades são exotéricas e outras são esotéricas. Alguns dos ouvintes de Pitágoras se contentavam com seu ipse dixit, enquanto que outros eram ensinados em segredo naquelas doutrinas que não eram consideradas próprias para serem comunicadas aos ouvidos profanos e insuficientemente preparados. Além disso, todos os Mistérios que são celebrados em toda a Grécia e em todos os países bárbaros, embora mantidos em segredo, não sofrem de nenhum descrédito, de modo que é vão que ele procure caluniar as doutrinas secretas do Cristianismo, constatando-se que ele não compreende corretamente sua natureza" (Origen against Celsus, livro I, cap. VII - A.-N.C.Libr, vol. X).

É impossível negar que nesta importante passagem Orígenes nitidamente coloca os Mistérios Cristãos na mesma categoria dos do mundo Pagão, e invoca que aquilo que não é considerado como um descrédito em relação a outras religiões não deveria constituir motivo de ataque quando encontrado no Cristianismo.

Ainda escrevendo contra Celso, ele declara que os ensinamentos secretos de Jesus foram preservados na Igreja, e se refere especificamente às explicações que Ele deu a Seus discípulos a respeito de Suas parábolas, ao responder á comparação de Celso entre "os Mistérios internos da Igreja de Deus" e o culto egípcio aos animais. "Ainda não falei da observância de tudo o que está escrito nos Evangelhos, cada um dos quais contém muita doutrina difícil de ser entendida, não apenas pela multidão, mas mesmo por alguns dos mais inteligentes, incluindo uma profundíssima explicação das parábolas que Jesus aplicava 'àqueles de fora', ao mesmo tempo reservando a exibição de seu pleno significado àqueles que haviam passado pelo estágio do ensino exotérico, e que vinham a Ele em privado na casa. E quando estes passam a entendê-la, admiram a razão pela qual alguns são ditos ser 'de fora' e outros 'de casa' (Origen against Celsus, livro I, cap. VII).


E ele se refere discretamente à "montanha" de onde Jesus ascendeu, e de onde Ele desceu para auxiliar "aqueles que eram incapazes de seguí-Lo para onde foram os Seus discípulos". A alusão é à "Montanha da Iniciação", uma frase mística bem conhecida, do mesmo modo que Moisés fez o Tabernáculo segundo o modelo "mostrado a ti no monte" (Êxodo, XX, 40; XXVI, 30, e compare-se com Hebreus, VIII, 5, e IX, 25). Orígenes se refere novamente a isto mais tarde, dizendo que Jesus mostrou-se bem diferente, em sua aparência real quando estava na "Montanha", daqueles que O viram e não podiam "seguí-Lo tão alto" (Origen against Celsus, livro IV, cap. XVI).


Igualmente em seu comentário sobre o Evangelho de Mateus, capítulo XV, tratando do episódio da mulher sírio-fenícia, Orígenes assinala: "E talvez, também, das palavras de Jesus existam alguns pães que são passíveis de serem dados somente aos mais racionais, como se fosse a crianças; e outras haja como se fossem migalhas da mansão e mesa dos bem-nascidos, que podem ser usadas por algumas almas semelhantes a cães".

A Celso, que lamentava que pecadores fossem trazidos para dentro da Igreja, Orígenes responde dizendo que a Igreja tinha o remédio para os que estavam doentes, mas também o estudo e conhecimento das coisas divinas para aqueles que estavam sãos. Os pecadores eram ensinados a não pecar, e somente quando era visto que havia sido feito progresso, e os homens estivessem "purificados pela Palavra", "então, e não antes, nós os convidamos à participação em nossos Mistérios. Pois nós falamos sabedoria entre os que são perfeitos" (Origen against Celsus, livro III, cap. LIX). Os pecadores vêm para serem curados: "Pois existe na divindade do Verbo alguns auxílios para a cura dos que estão doentes... (Existem) outros, ainda, que ao puro de alma e corpo exibem a 'revelação do Mistério, que foi mantido secreto desde que o mundo começou, mas que agora foi feito manifesto pelas Escrituras dos profetas', e 'pelo aparecimento de Nosso Senhor Jesus Cristo', cuja 'aparição' é manifesta a cada um dos que são perfeitos, e que ilumina a razão no verdadeiro conhecimento das coisas" (Origen against Celsus, livro III, cap. LXI). Tais aparições de Seres divinos tinham lugar, como vimos, nos Mistérios Pagãos, e aqueles da Igreja tinham igualmente visitantes gloriosos. "Deus, o Verbo", ele diz, "foi enviado como um médico para os pecadores, mas como um Instrutor dos Mistérios Divinos para aqueles que já são puros, e que não pecam mais" (Ibid., cap. LXII). "A sabedoria não entrará na alma de um homem vil, nem irá residir em um corpo que está imerso no pecado"; daí que estes ensinamentos elevados são dados apenas àqueles que são "atletas na piedade e em todas as virtudes". 
 
Os Cristãos não admitiam o impuro neste conhecimento, mas diziam: "Quem quer que haja limpado as mãos, e, portanto, ergue mãos limpas para Deus... que venha a nós... quem quer que seja puro não somente de todo aviltamento, mas também do que é considerado como transgressões menores, que seja intrepidamente iniciado nos Mistérios de Jesus, que são feitos propriamente conhecidos somente aos santos e aos puros". Também assim, antes que a cerimônia de Iniciação começasse, aquele que atuava como Iniciador, de acordo com os preceitos de Jesus, o Hierofante, fazia a significativa proclamação "àqueles que foram purificados no coração: Aquele cuja alma desde há muito tempo não tem consciência de nenhum mal, especialmente desde que sujeitou-se à cura pelo Verbo, que este ouça as doutrinas que eram ditas em privado por Jesus a Seus genuínos discípulos". Esta era a abertura das portas da "Iniciação, dos que já estavam purificados, para os sagrados Mistérios" (Origen against Celsus, livro III, cap. LX). Só estes poderiam aprender as realidades dos mundos invisíveis, e poderiam entrar nos recintos sagrados onde, como antigamente, os anjos eram os instrutores, e onde o conhecimento era dado pela visão e não pelas palavras. É impossível não perceber o tom diferente destes Cristãos em relação aos seus sucessores modernos. Para aqueles a perfeita pureza de vida, a prática da virtude, o cumprimento da Lei divina em cada detalhe na conduta exterior, a perfeição da justiça, eram - assim como para os Pagãos - somente o início do caminho ao invés de seu final. Hoje em dia considera-se que a religião completou gloriosamente seu objetivo quando produz um Santo; assim foi aos Santos que devotou suas mais altas energias, e, tomando os puros de coração, levava-os à Visão Beatífica.
O mesmo fato do ensinamento secreto aparece novamente quando Orígenes discute os argumentos de Celso sobre a sabedoria de preservar costumes ancestrais, baseada na crença de que "as várias regiões da Terra foram desde o início entregues a diferentes Espíritos superintendentes, e foram assim distribuídas entre certos Poderes diretores, e deste modo a administração do mundo é levada adiante" (Origen against Celsus, livro V, cap. XXV - A.-N.C.Libr., vol. XXIII).

Tendo Orígenes condenado as deduções de Celso, prossegue: "Mas como imaginamos ser provável que alguns daqueles acostumados a investigações mais profundas se deparem com este tratado, arrisquemos a deixar algumas considerações de um tipo mais profundo, com uma visão mística e secreta a respeito da distribuição original das várias regiões da Terra entre diferentes Espíritos superintendentes" (Ibid., cap. XXVIII). Ele diz que Celso havia entendido mal as razões mais profundas a respeito do arranjo dos assuntos terrenos, algumas das quais são abordadas mesmo na história grega. Então ele cita o Deuteronômio, XXXII, 8-9,: "Quando o Altíssimo dividiu as nações, quando Ele dispersou os filhos de Adão, estabeleceu os limites dos povos de acordo com o número dos Anjos de Deus; e a porção do Senhor foi Seu povo Jacó, e Israel a linhagem de Sua herança". Este é o fraseado da edição Septuaginta, não a da Inglesa Autorizada, mas é muito sugestivo de que o título de "Senhor" fosse atribuído ao Anjo Regente dos Judeus, apenas, e não ao "Altíssimo", isto é, Deus. Esta visão desapareceu, pela ignorância, e disto deriva a inadequação de muitas das declarações que se referem ao "Senhor", quando são transferidas ao "Altíssimo", como por exemplo em Juizes, I, 19 ["O Senhor estava com Judá, e ele conquistou a montanha, porém não pôde despojar os habitantes da planície, que possuíam carruagens de ferro" - NT].

Orígenes então relata a história da Torre de Babel, e continua: "Mas muito poderia ser dito sobre estes assuntos, e coisas de tipo místico, como o que segue: 'É bom ocultar o segredo de um rei', Tobias, XII, 7, 'a fim de que a doutrina da entrada das almas nos corpos (porém não a da transmigração de um corpo para outro) não seja divulgada ao entendimento comum, nem o que é santo dado aos cães, nem pérolas jogadas aos porcos. Pois tal procedimento seria ímpio, sendo equivalente a uma traição das declarações misteriosas da sabedoria de Deus... É suficiente, contudo, representar no estilo de uma narrativa histórica, com uma vestimenta de história, o que é planejado para veicular um significado secreto, para que aqueles que têm capacidade desenvolvam por si mesmos tudo o que se relaciona ao assunto" (Origen against Celsus, livro V, cap. XXIX - A.-N.C.Libr., vol. XXIII). Ele então expõe mais completamente a história da Torre de Babel, e escreve: "Porém, a seguir, se alguém tiver capacidade, que entenda aquilo que assume a forma de história, e que contém algumas coisas que são literalmente verdade, embora ao mesmo tempo veicule um significado mais profundo..." (Ibid., cap. XXXI).

Depois de tentar mostrar que o "Senhor" era mais poderoso do que os outros Espíritos superintendentes de diferentes partes da Terra, e que ele enviou seu povo para ser punido vivendo debaixo do domínio de outros poderes, e depois alinhou-os com todas as nações menos favorecidas que podiam ser reunidas, Orígenes conclui dizendo: "como observamos previamente, estas declarações devem ser entendidas como sendo feitas por nós com um sentido oculto, indicando os erros daqueles que asseveram... " (Ibid., cap. XXXII) como o fez Celso.

Depois de assinalar que "o objetivo do Cristianismo é que nos tornemos sábios" (Ibid., cap. XIV), Orígenes prossegue: ""Se consultamos os livros escritos depois do tempo de Jesus, veremos que aquelas multidões de crentes que ouviram as parábolas são, como se diz, "de fora', e dignos apenas das doutrinas exotéricas, enquanto que os discípulos aprendem em privado a explicação das parábolas. Pois privadamente Jesus descerrou todas as coisas aos Seus discípulos , estimando acima das multidões aqueles que desejavam conhecer Sua sabedoria. E Ele promete àqueles que acreditam n'Ele torná-los homens sábios e escribas... E Paulo também em seu catálogo dos 'Charismata' outorgados por Deus, colocou em primeiro lugar 'a Palavra da sabedoria', e em segundo, como sendo-lhe inferior, a 'palavra do conhecimento', mas em terceiro, e mais abaixo, a 'fé'. E porque ele considerava 'a palavra' mais alto do que os poderes miraculosos, ele por esta razão coloca a 'operação de milagres' e os 'dons de cura' em um lugar mais baixo do que os dons da 'Palavra' " (Ibid., cap. XLVI).

O Evangelho em verdade ajudava o ignorante, "mas não é impedimento algum para o conhecimento de Deus, antes é uma assistência, ter sido educado, e ter estudado as melhores opiniões, e ser sábio" (Ibid., caps. XLVII e LIV). Assim, para o inculto, "eu tento melhorá-lo também com o melhor de minha habilidade, embora eu não deseje construir a comunidade Cristã a partir de tais materiais. Pois eu busco de preferência os que são mais sagazes e argutos, porque são capazes de compreender o significado dos ditos mais difíceis"(Ibid., cap. LXXIV). Aqui expusemos claramente a antiga idéia Cristã, inteiramente de acordo com as considerações apresentadas no Capítulo I deste livro. No Cristianismo existe espaço para o ignorante, mas ele não foi planejado somente para estes, e tem ensinamentos mais profundos para os "sagazes e argutos". 
 
É para estes últimos que ele tem grande empenho em mostrar que as Escrituras Cristãs e Judaicas têm significados ocultos, velados debaixo de histórias cujo significado exterior ele repele como absurdos, aludindo à serpente e a árvore da vida, e "as outras declarações que se seguem, que poderiam em si conduzir um leitor cândido a ver que todas estas coisas têm, não impropriamente, um significado alegórico" (Ibid., livro IV, cap. XXXIX). Muitos capítulos são devotados a estes sentidos alegóricos e místicos, escondidos debaixo das palavras do Velho e do Novo Testamentos, e ele alega que Moisés, como os Egípcios, contou histórias que ocultavam o significado" (Origen against Celsus, livro I, cap. XVII e outros - A.-N.C.Libr., vol X). "Aquele que lida candidamente com as histórias" - este é o cânone geral de interpretação de Orígenes - "e deseje se preservar de ser confundido por elas, exercitará seu julgamento sobre a quais declarações dará seu consentimento, e o que aceitará figuradamente, procurando descobrir a intenção dos autores destas invenções, e contra quais declarações ele preservará suas crenças, como tendo sido escritas para a gratificação de certos indivíduos. E dissemos isto como antecipação a respeito de toda a história relatada nos Evangelhos a respeito de Jesus" (Ibid., cap. XIII). Uma grande parte de seu Livro IV é tomada por ilustrações das explicações místicas das histórias das Escrituras, e qualquer um que deseje seguir o assunto pode lê-lo.

No De Principiis, Orígenes dá como sendo o ensinamento recebido da Igreja "que as escrituras foram escritas pelo Espírito de Deus, e tendo um significado, não apenas aquele aparente á primeira vista, mas também um outro, que escapa da percepção da maioria. Pois aquelas (palavras) que são escritas são as formas de certos Mistérios, e as imagens das coisas divinas. A este respeito existe uma única opinião em toda a Igreja, de que toda a lei é em verdade espiritual; mas que o significado espiritual que a lei veicula não é conhecido de todos, mas só àqueles em quem a graça do espírito Santo é outorgada na palavra da sabedoria e do conhecimento" (De Principiis, prefácio, p. 8 - A.-N.C.Libr., vol. X). Aqueles que lembram o que já foi citado verão na "Palavra de sabedoria" e na "palavra do conhecimento" as duas instruções místicas típicas, a espiritual e a intelectual.

NO Livro IV de De Principiis, Orígenes explica longamente suas concepções sobre a interpretação da Escritura. Ela tem um "corpo", que é "o senso histórico e comum"; uma "alma", um significado figurado a ser descoberto pelo exercício do intelecto; e um "espírito", um sentido interno e espiritual, a ser conhecido somente por aqueles que têm "a mente de Cristo". Ele considera que coisas incongruentes e impossíveis são inseridas na história para estimular um leitor inteligente, e compeli-lo a buscar uma explicação mais profunda, enquanto que as pessoas simples a lerão sem perceber as dificuldades (Ibid., cap. I).

O Cardeal Newman, em seu Arians of the Fourth Century, faz certas declarações interessantes sobre a Disciplina Arcani, mas, com o ceticismo profunda e indelevelmente enraizado do século XIX, ele não pode acreditar de todo nas "riquezas da glória do Mistério", ou provavelmente nem por um momento concebeu a possibilidade da existência de tais esplêndidas realidades. Mesmo sendo ele um crente em Jesus, e as palavras da promessa de Jesus sendo claras e definidas: "Eu não vos deixarei sem conforto; Eu virei a vós. Ainda um pouco mais, e o mundo já não Me verá; mas vós me vereis: porque Eu vivo, e viverei. Naquele dia devereis saber que Eu estou no meu Pai, e vós em Mim, e Eu em vós" (João, XIV, 18-20). A promessa foi amplamente cumprida, pois Ele veio a eles e os ensinou em Seus Mistérios; lá eles O viram, embora o mundo já não O visse, e reconheceram o Cristo neles, e sua vida como a do Cristo.

O cardeal Newman reconhece uma tradição secreta, transmitida desde os Apóstolos, mas ele considera que consistia das doutrinas Cristãs, mais tarde divulgadas, esquecendo que aqueles que eram informados de que ainda não estavam prontos para recebê-la (a doutrina secreta) não eram pagãos, nem mesmo catecúmenos, mas membros plenos e comungantes da Igreja Cristã. Assim ele diz que esta tradição secreta foi mais tarde (divulgada com autoridade e perpetuada sob a forma de símbolos", e foi corporificada "nos credos dos primeiros Concílios" (Loc. cit., cap. I, seç. III, p. 55). Mas como as doutrinas nos credos são encontráveis nos Evangelhos e nas Epístolas, esta posição é completamente insustentável, tudo isto já tendo sido divulgado ao mundo amplamente; e os membros da Igreja certamente estavam instruídos de tudo a respeito de todas elas. As repetidas declarações a respeito do sigilo se tornam sem sentido se explicadas desta forma. O Cardeal, entretanto, diz que o que quer que "não tenha sido autenticado desta forma, seja informação profética ou comentário sobre as antigas dispensações, é, pelas circunstâncias do caso, perdido para a Igreja" (Loc. cit., cap. I, seç., III, pp. 55-56). Isto é muito provável, de fato é certamente verdadeiro, até onde interessa à Igreja, mas não obstante é recuperável.

Comentando sobre Irineu, que em sua obra Contra as Heresias dá muita ênfase sobre a existência de uma Tradição Apostólica na Igreja, o Cardeal escreve: "Ele então passa a falar da clareza e poder de persuasão das tradições preservadas na Igreja, como contendo a verdadeira sabedoria dos perfeitos, da qual fala São Paulo, e à qual pretendem os Gnósticos. E, na verdade, (mesmo) sem provas formais da existência e da autoridade nos primeiros tempos de uma Tradição Apostólica, é claro que deve ter havido uma tal tradição, supondo que os Apóstolos conversassem, e seus amigos tivessem lembranças, como outros homens. É de todo inconcebível que eles não tivessem sido levados a arranjar as séries de doutrinas reveladas mais sistematicamente do que as registram nas Escrituras, assim que seus seguidores foram expostos aos ataques e más interpretações dos heréticos; a menos que tenham sido proibidos disto, uma suposição que não se sustenta. Suas declarações surgidas nestas circunstâncias obviamente seriam preservadas, juntamente com os outros segredos, mas que eram verdades de menor importância, aos quais São Paulo parece aludir, e que os primeiros escritores mais ou menos reconhecem, seja a respeito dos modelos da Igreja Judaica, ou dos destinos futuros da Cristã. E tais recordações dos ensinamentos apostólicos evidentemente seriam imperativas sobre a fé daqueles que eram instruídos nelas; a menos que se possa supor que, embora provindo de instrutores inspirados, não fossem de origem divina" (Ibid., pp. 54,55). Em uma parte da seção que trata do método alegórico, ele escreve em referência ao sacrifício de Isaac, etc, como sendo "típico da revelação do Novo Testamento": "Em reforço a esta declaração, seja observado que parece ter havido ('parece ter havido' é uma expressão algo fraca, depois do que é dito sobre Clemente e Orígenes, dos quais algumas citações são dadas no texto) na Igreja uma explicação tradicional destes modelos históricos, derivada dos Apóstolos, mas mantidas entre as doutrinas secretas, por serem perigosas à maioria dos ouvintes; e certamente São Paulo, na Epístola aos Hebreus, nos dá um exemplo desta tradição, tanto como existente quanto como secreta (mesmo sendo mostrado ser de origem Judaica), quando, primeiro provando-se e questionando a fé de seus irmãos, comunica, não sem hesitação, a visão evangélica da passagem sobre Melquisedec, do modo como foi introduzida no livro do Gênesis" (Ibid., p. 62).

As convulsões sociais e políticas que acompanharam a morte do Império Romano agora começavam a torturar sua vasta moldura, e mesmo os Cristãos foram colhidos no torvelinho dos interesses egoístas em combate. Ainda encontraremos referências esparsas ao conhecimento especial concedido aos líderes e instrutores da Igreja, conhecimento das hierarquias celeste, instruções dadas por anjos, e assim por diante. Mas a ausência de discípulos aceitáveis fez com que os Mistérios se extinguissem como uma instituição cuja existência era reconhecida publicamente, e o ensinamento passou a ser dado mais e mais secretamente àquelas almas mais e mais raras, que pela cultura, pureza e devoção se mostravam capazes de recebê-lo. Já não havia escolas onde os ensinamentos preliminares fossem dados, e com seu desaparecimento "a porta foi fechada".

Não obstante pode-se detectar duas correntes na Cristandade, as quais tiveram suas fontes nos Mistérios desaparecidos. Uma era a corrente do aprendizado místico, fluindo da Sabedoria, da Gnose transmitida nos Mistérios; outra era a corrente da contemplação mística, igualmente parte da Gnose, conduzindo ao êxtase, à visão espiritual. Esta última, contudo, divorciada do conhecimento, raramente atingiu o verdadeiro êxtase, e tendeu ou a correr desenfreada para as regiões mais baixas dos mundos invisíveis, ou perder-se entre uma variegada multidão de formas sutis superfísicas, visíveis como aparições objetivas à visão oculta - forçada prematuramente por jejuns, vigílias e atenção concentrada - mas em sua maioria nascidas dos pensamentos e emoções do vidente. Mesmo quando as formas observadas não eram pensamentos externalizados, eram vistas através de uma atmosfera distorcedora de idéias e crenças preconcebidas, e assim tornadas largamente indignas de crédito. Não obstante, algumas das visões foram veramente de coisas celestiais, e Jesus realmente apareceu de tempos em tempos aos Seus amantes devotados, e anjos algumas vezes iluminaram com sua presença a cela do monge e da freira, a solitude do devoto apaixonado e do paciente buscador de Deus. Negar a possibilidade de tais experiências seria amputar na própria raiz aquilo "que tem sido acreditado com mais certeza" em todas as religiões, e é conhecido dos ocultistas - a intercomunicação entre Espíritos encerrados na carne e aqueles revestidos de vestimentas mais sutis, o contato de mente com mente através das barreiras da matéria, o desabrochar da divindade no homem, o conhecimento seguro de uma vida além dos portões da morte.

Olhando pelos séculos não vemos tempo algum em que a Cristandade estivesse de todo privada de mistérios. "Foi provavelmente em torno do final do século V, bem na época em que a antiga filosofia estava morrendo na Escola de Atenas, que a filosofia especulativa do Neoplatonismo estabeleceu-se definitivamente no pensamento Cristão através das falsificações literárias do Pseudo-Dionísio. As doutrinas do Cristianismo estavam naquela altura tão firmemente estabelecidas que a Igreja poderia encarar uma interpretação simbólica ou mística delas sem ansiedade. O autor da Theologica Mystica e de outras obras atribuídas ao Areopagita passa, assim, a desenvolver as doutrinas de Proclo sem muita modificação em um sistema de Cristianismo esotérico. Deus é o Ser inominável e supra-essencial, acima da própria bondade. Daí a 'teologia negativa', que sobe da criatura até Deus retirando um após outro todos os atributos determinados, e que nos conduz para mais perto da verdade. O retorno para Deus é a consumação de todas as coisas e a meta indicada pelo ensino Cristão. As mesmas doutrinas foram pregadas com maior fervor eclesiástico por Máximo, o Confessor (580-622). Máximo representa quase a última atividade especulativa da Igreja grega, mas a influência dos escritos do Pseudo-Dionísio foi transmitida para o Ocidente no século IX por Erígena, em cujo espírito especulativo tiveram origem tanto o escolasticismo quanto o misticismo da Idade Média. Erígena traduziu Dionísio para o latim junto com os comentários de Máximo, e seu sistema é essencialmente baseado no deles. É adotada a teologia negativa, e Deus é considerado um Ser sem atributos, acima de todas as categorias, e portanto não impropriamente chamado de Nada. Fora deste Nada ou essência incompreensível é criado eternamente o mundo das idéias ou causas primordiais. Este é o Verbo ou Filho de Deus, em quem existem todas as coisas, até onde possuam existência substancial. Toda a existência é uma teofania, e como Deus é o início de todas as coisas, também é seu final. Erígena ensina o resgate de todas as coisas sob a forma da adunatio ou deificatio Dionisiana. Estas são as linhas gerais permanentes do que pode ser chamado a filosofia do misticismo nos tempos Cristãos, e é notável a escassez de variação com que são repetidas de era em era" (Artigo sobre Misticysm, in Encyclopaedia Britannica).

No século XI Bernardo de Claraval (1091-1153) e Hugo de São Victor continuaram a tradição mística, com Richard de São Victor no século seguinte, e São Boaventura, o Doutor Seráfico, e o grande Tomás de Aquino (1227-1274) no século XIII. Tomás de Aquino domina a Europa da Idade Média, pela força de seu caráter não menos do que por sua erudição e piedade. Ele estabelece a "Revelação" como uma fonte de conhecimento, sendo a Escritura e a tradição os dois canais por onde corre, e a influência, perceptível em seus escritos, do Pseudo-Dionísio o conecta aos Neoplatônicos. A segunda fonte é a Razão, e aqui os canais são a filosofia Platônica e os métodos de Aristóteles - este uma aliança que não fez bem ao Cristianismo, pois Aristóteles se tornou um obstáculo para o progresso do pensamento superior, o que se evidencia nas lutas de Giordano Bruno, o Pitagórico. Tomás de Aquino foi canonizado em 1323, e o grande Dominicano permanece como um modelo da união da teologia e da filosofia - o anelo de sua vida. Eles pertencem à grande Igreja da Europa ocidental, e sustentam sua reivindicação de ser considerada a transmissora da tocha santa do ensinamento místico. Em torno dela também se disseminaram muitas seitas, julgadas heréticas, mas que continham tradições verdadeiras do sagrado conhecimento secreto, como os Cátaros e muitos outros, perseguidos por uma Igreja ciumenta de sua autoridade, temerosa de que as pérolas santas passassem à custódia profana. Também naquele século Santa Elisabeth da Hungria rebrilha com doçura e pureza, enquanto que Eckhart (1260-1329) prova ser um digno herdeiro das Escolas Alexandrinas. Eckhart ensinou que "a Divindade é a Essência (Wesen) absoluta, incognoscível não só pelos homens, mas também por Si mesmo; Ela é escuridão e absoluta indeterminação, Nicht, em contraste a Icht, ou existência definida e cognoscível. Mas é a potencialidade de todas as coisas, e Sua natureza, num processo triádico, passa à consciência de Si como o Deus trino. A criação não é um ato temporal, mas uma necessidade eterna da natureza divina". Eckhart se compraz em dizer que "eu sou necessário para Deus, assim como Deus é necessário para mim. Em meu conhecimento e amor Deus conhece e ama a Si mesmo" (Verbete Mysticism; Encyclopaedia Britannica).

Eckhart é seguido, no século XIV, por John Tauler e Nicolas de Basel, "o amigo de Deus em Oberland". Deles nasceu a Sociedade dos Amigos de Deus, verdadeiros místicos e seguidores da antiga tradição. Mead assinala que Tomás de Aquino, Tauler e Eckhart seguiram o Pseudo-Dionísio, que seguiu Plotino, Jâmblico e Proclo, que por sua vez seguiram Platão e Pitágoras (Mead, Orpheus, pp. 53-54). Deste modo são interligados os seguidores da Sabedoria em todas as eras. Foi provavelmente um "Amigo" o autor da Die Deustche Theologie, um livro de devoção mística, que teve o curioso destino de ser aprovado por Schaupitz, o Vigário-Geral da ordem Agostiniana, que foi recomendado a Lutero e pelo próprio Lutero, que o publicou em 1516, como um livro que deveria estar logo depois da Bíblia e dos escritos de Santo Agostinho de Hipona. Um outro "Amigo" foi Ruysbroeck, cuja influência em Groot foi devida à fundação dos Irmãos do Quinhão Comum ou da Vida Comum - uma Sociedade que deve permanecer sempre memorável, já que tinha entre seus membros aquele príncipe dos místicos, Thomas a Kempis (1380-1471), o autor da imortal Imitação de Cristo.

No século XV o lado mais puramente intelectual do misticismo desponta mais fortemente do que o extático - tão dominante nestas sociedades do século XIV - e temos o Cardeal Nicolau de Cusa, junto com Giordano Bruno, o martirizado cavaleiro errante da filosofia, e Paracelso, o caluniadíssimo cientista, que retirou seu conhecimento diretamente das fontes orientais originais, em vez de através de canais gregos.

O século XVI presenciou o nascimento de Jacob Böhme (1575-1624), o "remendão inspirado", verdadeiramente um Iniciado em obscurecimento, dolorosamente perseguido por homens não iluminados; e então veio Santa Teresa, a oprimidíssima e sofredora mística espanhola; e São João da Cruz, uma flama ardente de intensa devoção; e São Francisco de Sales. Roma foi sábia ao canonizá-los, mais sábia que a Reforma, que perseguiu Böhme, mas o espírito da Reforma foi sempre intensamente antimístico, e onde quer que seu alento tenha passado as formosas flores do misticismo murcharam como debaixo do Sirocco. 
 
Assim, embora tendo apoiado, canonizando, uma Teresa morta, depois de tê-la atormentado amargamente em vida, a Igreja procedeu pior com Madame de Guyon (1648-1717), uma verdadeira mística, e com Miguel de Molinos (1627-1696), digno de sentar-se ao lado de São João da Cruz, que continuou no século XVII a alta devoção do místico, transformada em uma forma peculiarmente passiva - o Quietismo.

Neste mesmo século surgiu a escola dos Platônicos em Cambridge, de quem Henry More (1614-1687) pode servir como exemplo eminente; também Thomas Vaugham, e Robert Fludd, o Rosacruz; e lá foi formada ainda a Sociedade dos Filadelfos, e vemos William Law (1686-1761) ativo no século XVIII, e ultrapassando Saint-Martin (1743-1803), cujos escritos fascinaram tantos estudantes do século XIX (Aqui devo prestar reconhecimento ao artigo Mysticism da Encyclopaedia Britannica, embora esta publicação não possa de modo algum ser responsabilizada pelas opiniões expressas).

Nem devemos omitir Christian Rosenkreutz (morto em 1484), cuja mística Sociedade da Rosa e da Cruz, aparecida em 1614, tinha verdadeiro conhecimento, e cujo espírito renasceu no "Conde de Saint-Germain", a misteriosa figura que apareceu e desapareceu na melancolia, iluminada por lúgubres lampejos, do final do século XVIII. Também místicos foram alguns Quakers, a muito perseguida seita dos Amigos, procurando a iluminação da Luz Interior, e ouvindo sempre a Voz Interior. E houve muitos outros místicos, "de quem o mundo não foi digno", como a completamente adorável e sábia Mãe Juliana de Norwich, do século XIV, jóias da Cristandade, escassamente conhecidas, mas justificando o Cristianismo diante do mundo.

Assim, ao mesmo tempo em que saudamos reverentes estas Crianças da Luz, espalhadas pelos séculos, somos forçados a reconhecer nelas a ausência daquela união de intelecto agudo e alta devoção que seriam fundidos pelo treinamento nos Mistérios, e enquanto nos maravilhamos de que tenham se alçado tão alto, não podemos senão desejar que tivessem seus raros dons sido desenvolvidos debaixo da magnífica disciplina arcani.

Alphonse Louis Constant, mais conhecido por seu pseudônimo Eliphas Levi, expressou muito bem a perda dos Mistérios, e a necessidade de sua reinstituição. "Um grande infortúnio se abateu sobre a Cristandade. A traição dos Mistérios pelos falsos Gnósticos - pois Gnósticos, isto é, aqueles que sabem, eram os Iniciados do Cristianismo primitivo - fizeram com que a Gnose fosse rejeitada, e alienaram a Igreja das supremas verdades da Kabbala, que contém todos os segredos da teologia transcendental... Que a ciência mais absoluta, que a mais excelsa razão, se tornem uma vez mais o patrimônio dos líderes dos povos; que a arte sacerdotal e a arte régia tomem o duplo cetro das antigas iniciações, e o mundo social será uma vez mais tirado de seu caos. Chega de queimar as imagens, basta de derrubar os templos; templos e imagens são necessários para os homens; mas expulsem os mercenários da casa de oração; que o cego deixe de ser o líder para os cegos, reconstrua-se a hierarquia de inteligência e santidade, e reconheçam somente aqueles que sabem como instrutores dos que crêem" (The Mysteries of Magic, trad. para o inglês de A.E.Waite, pp 58 e 60).

Retomarão as Igrejas de hoje o ensinamento místico, os Mistérios Menores, preparando assim seus filhos para o restabelecimento dos Mistérios Maiores, atraindo mais uma vez o Anjos para ensinar, e tendo como Hierofante o Divino Mestre, Jesus? Da resposta a esta pergunta depende o futuro do Cristianismo.



Annie Besant
 
(fonte: Hermanubis; em Português do brasil)