sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Ensaio sobre a Iniciação - Fernando Pessoa



O ensaio sobre a Iniciação.
 

Havia três razões pelas quais nas religiões pagãs certas verdades, ou coisas supostas serem verdades, eram transmitidas só em segredo e reclusão, por iniciação. A primeira era uma razão social: pensava-se que essas tais verdades eram impróprias para transmissão a qualquer homem, a nau ser que ele estivesse em certa medida preparado para as receber, e que elas teriam resultados sociais desastrosos se fossem tornadas públicas, pois isso significaria que seriam mal compreendidas. «Etiamsi revelare destruere est...» A segunda era uma razão filosófica: supunha-se que, em si próprias, essas verdades não eram de um género que o homem comum pudesse compreender e que lhe poderia advir confusão mental e desequilíbrio na conduta se lhe fossem inutilmente comunicadas. A terceira era, por assim dizer, uma razão espiritual: pensava-se que, por serem verdades da vida interior, essas verdades não deviam ser comunicadas, mas sugeridas, e que a sugestão devia ser impressiva, rodeada de secretismo, para que pudesse ser sentida como de valor; de ritual, para que pudesse impressionar e surpreender; de símbolos, para que o candidato fosse forçado a abrir o seu próprio caminho, lutando por interpretar os símbolos, em vez de se julgar cheio de conhecimento se a comunicação tivesse sido feita por ensinamento dogmático ou filosófico.


Não digo que estas três razões se apresentassem claras ou em separado ou em conjunto, embora assim divididas, nos espíritos dos antigos, sacerdotes ou leigos das suas religiões. Mas digo que, quando não por inteligência directa, ao menos por intuição, eles basearam as suas religiões neste esquema divisional.

As religiões dos Antigos, e sobretudo as religiões pagãs da Grécia e Roma, que são as que mais nos interessam, uma vez que os nossos espíritos são seus filhos, estavam divididas em três formas. Havia uma forma social, o culto, que era o do homem como cidadão. Havia uma forma individual, a poesia, que era do homem como não-cidadão; cumprido o culto devidamente, ele podia interpretar para si os deuses como entendesse e elaborar as suas lendas como lhe parecesse mais adequado. E havia uma forma secreta, a iniciação, que participava em segredo das características de ambas: era individual porque, mesmo quando a iniciação era colectiva como nos grandes Mistérios pagãos, era sempre o indivíduo o iniciado e não o grupo; era social, porque a iniciação era comunicada em ritual e o ritual é social.


O que com os Cristãos raramente está associado ou fundido com a poesia como acontecia com os pagãos. (Não compreenderemos a Idade Média até que compreendamos que a teologia era a sua poesia, que a ausência de poesia então mais não era que a presença da poesia sob outra forma).


Todas as religiões, porém, estão no mesmo estado que as grandes religiões pagãs. As três formas de religião serão encontradas de uma forma ou de outra em todas. Nas religiões cristas, por exemplo, temos o culto público, quer seja altamente cerimonial como na Igreja Romana, quer pobre até à nudez como nas seitas protestantes extremistas; temos a religião individual significando a reflexão pessoal sobre os dogmas e fórmulas de fé, e isto é teologia onde (com os pagãos), era antes poesia; e temos a vida interior do cristão, que é a sua iniciação, porque nas religiões cristãs a iniciação é considerada como dada por Cristo, só, misticamente, e não por qualquer sacerdote ou hierofante ritualmente ou ceremonialmente. Por outras palavras — cujo sentido mais exacto será compreendido mais tarde — a iniciação pagã encaminhou-se para a Magia, como fazem todas as iniciações rituais, e a iniciação cristã encaminhou-se para o Misticismo, como fazem todas as iniciações meditativas.


Qualquer que seja o número de graus, exteriores ou interiores, na escala de ascensão para a verdade, eles podem ser considerados como três — Neófito, Adepto e Mestre. Na realidade, os graus são dez — quatro para o Neófito, três para o Adepto e três, por assim dizer, para o Mestre. Há realmente também dois intergraus que ficam entre o primeiro e o segundo, e entre o segundo e o terceiro há ordens, estas também não numeradas. Os graus não numerados são graus de noviciado, enquanto os outros são, cada um na sua medida, graus de realização.


O Neófito, ao longo dos graus que esta expressão descreve, é essencialmente um aprendiz; o seu caminho é em direcção à realização do conhecimento na esfera exterior. No Adepto, ao longo dos seus três passos, há um progresso na unificação do conhecimento com a vida. No Mestre há, ou diz-se que há, uma distribuição da unidade assim atingida em virtude de uma unidade mais elevada.

Uma comparação com coisas mais simples tornará isto mais claro, creio. Suponhamos que o escrever grande poesia é o fim da iniciação. O grau de Neófito será a aquisição dos elementos culturais com que o poeta terá de tratar ao escrever poesia e que são, grau a grau e no que se afigura ser uma analogia exacta: 0) gramática, 1) cultura geral, 2) cultura literária particular, 3) [incompleto no original, e a numeração salta] O grau de Adepto será, extraindo a analogia da mesma maneira 5) o escrever poesia lírica simples como num poema lírico comum, 6) o escrever poesia lírica complexa como em, 7) o escrever poesia lírica ordenada ou filosófica como na ode.

O grau de Mestre será, da mesma maneira: 8) o escrever poesia épica, 9) o escrever poesia dramática, 10) a fusão de toda a poesia, lírica, épica e dramática em algo para lá de todas elas.


Ao leitor desta analogia literária ocorrerão três observações. A primeira é que se pode ser poeta sem os graus de Neófito, Adepto do primeiro grau de Adepto sem sequer se «tomar» o primeiro grau de neófito. A segunda é que a progressão descrita não corresponde à que habitualmente acontece na vida, seja ela a de um poeta ou a de qualquer outro homem. A terceira é que a função de toda a poesia, lírica, épica e dramática, em algo que fica para além das três, é uma realização que excede a compreensão.


Levei o leitor a fazer estas observações para que eu pudesse, replicando-lhes, completar a analogia com uma explicação.

Quanto à primeira observação: O primeiro grau de Adepto é, na verdade, o primeiro grau real da iniciação real. Um místico simples, que funde a sua fé e a sua vida, atingiu o começo da iniciação real, enquanto o neófito aperfeiçoado, no qual a fé (ou conhecimento) e a vida ainda estão separados, não a atingiu. Mas se o Adepto espontâneo tiver atingido o Quinto Grau sem ter passado pelos cinco primeiros (que incluem o grau Zero), terá de permanecer largo tempo à entrada da Câmara do Meio, onde se pode adequadamente dizer estar «colocado» o primeiro grau de Adepto. Para passar ao Sexto Grau ele terá, em certo sentido, de voltar ao princípio.


Fernando Pessoa

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