quarta-feira, 25 de agosto de 2010

O Caminho da Serpente - Fernando Pessoa



Todo homem, que tenha que talhar para si um caminho para Alto, encontrará obstáculos incompreensíveis e constantes. Se não fossem mais que os obstáculos que se atravessam e estimulam, pelo perigo ou pela resistência directa, bem iria, e os próprios obstáculos seriam o clarim para o avanço. Mas encontrará outros — os obstáculos reles que vexam e vergam, os obstáculos suaves que adormecem e viciam, os obstáculos ternos que o farão, como Orfeu, volver o erro do olhar para o vedado Averno. Cercá-lo-ão, não só resistências duras, como as que os penhascos erguem como tropeço, mas resistências brandas, como as memórias dos vales, e a dos lares nas faldas. E o triunfo consiste na força para, sabendo sentir essas atracções intensamente (pois não sabê-las sentir é não ter alma para a subida), as submeter à emoção superior; sabendo organizar as vontades do amor e da terra, saber submetê-las à vontade do espírito do mundo. Este processo de vitória, figuram-o os emblemadores no símbolo da Crucifixão da Rosa—ou seja no sacrifício da emoção do mundo (a Rosa, que é o círculo em flor) nas linhas cruzadas da vontade fundamental e da emoção fundamental, que formam o substrato do Mundo, não como Realidade (que isso é o circulo) mas como produto do Espírito (que isso é a cruz).


Fernando Pessoa

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