terça-feira, 3 de agosto de 2010

"União com Deus" - Fernando Pessoa

Inic. (Occ.)
 

É difícil, claro, compreender o que se entende por União com Deus, mas pode dar-se uma certa ideia do que isso quer dizer. Se presumirmos que, qualquer que tenha sido o modo (independentemente do erro do uso de um tempo verbal que implica tempo) como Deus criou o mundo, a substancia dessa criação foi a conversão, efectuada por Deus, da sua própria consciência na consciência plural dos seres separados O grande clamor da Divindade Indiana «Oh, pudesse eu ser muitos!» dá a ideia, sem a ideia de realidade.


A união com Deus significa, portanto, a repetição pelo Adepto do Acto Divino de Criação pelo qual ele é idêntico a Deus em acto ou em modo de acto, mas, ao mesmo tempo, uma inversão do Acto Divino pelo qual ele continua a estar separado de Deus ou a ser o oposto de Deus; se não, seria o próprio Deus e não seria necessária qualquer união.


O Adepto, se conseguir a unidade entre a sua consciência e a consciência de todas as coisas, se conseguir transformá-la numa inconsciência (ou inconsciência de si próprio) que é consciente, repete dentro de si o Acto Divino que é a conversão da consciência individual de Deus na consciência plural de Deus em indivíduos. Mas, assim, ele alcança a pluralidade que Deus atingiu quando da feitura do todo de que ele é parte e, ao repetir o Acto de Deus, ele está realmente a invertê-lo, e, ao invertê-lo, a fazer o caminho de regresso a Deus e, assim, a alcançar a união com Deus.


Se representarmos todo este esquema por dois triângulos equiláteros com a mesma base, cada um, por assim dizer, oposto ao outro, teremos uma ideia clara, ou tão clara quanto possível, do método da obtenção da União com Deus. Deus, vértice do triângulo superior, abre para a base e a base estreita-se até ao vértice virado para baixo do triângulo inferior. Do vértice do triângulo inferior há ascensão para a linha base de ambos: assim a descida de Deus é repetida no sentido ascensional e, ao mesmo tempo há ascensão para Deus.


Ora isto, seja qual for o modo por que seja considerado, conduz-nos à teoria peculiar dos três tipos de consciência: a Consciência Divina, a Consciência do Mundo e a Consciência Individual. Na primeira a identidade é absoluta, não havendo sujeito nem objecto. Na segunda o sujeito fez de si o seu próprio objecto, e, sendo infinito porque indivisível, torna-se objectivamente infinito, isto é, infinito porque infinitamente divisível. Na terceira, o sujeito fez de si mesmo como objecto o seu próprio sujeito, e tomou consciência de si próprio e, por conseguinte, consciência de si próprio em cada elemento infinitesimal desse objecto.


Quanto mais cada sujeito infinitesimal faz de si próprio objecto para si próprio, mais se aproxima do primeiro passo à rectaguarda em direcção à Suprema Consciência. De aqui passará eventualmente à anulação disto e ao regresso ao estádio original da Divina consciência.



Fernando  Pessoa

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