quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A IMPORTÂNCIA DA ORAÇÃO PARA APOLONIO DE TIANA




Apolônio acreditava na oração, mas quão diferentemente da vulgar! Para ele a idéia de que os Deuses pudessem ser desviados da senda da estrita justiça pelas súplicas dos homens era uma blasfêmia; que os Deuses pudessem se tornar partidários de nossas esperanças e temores egoístas, para nosso filósofo era algo impensável. Só sabia de uma coisa: que os Deuses eram os ministros do direito e os rígidos administradores do justo merecimento. A crença comum, que persiste até em nossos dias, de que Deus pode ser desviado de Seu propósito, de que pactos poderiam ser feitos com Ele ou Seus ministros, era inteiramente desprezível para Apolônio. Seres com quem pactos podiam ser feitos, que podiam ser influenciados e obrigados, não seriam Deuses, mas menos que homens. Assim encontramos Apolônio jovem conversando com um dos sacerdotes de Esculápio nos seguintes termos:

"Já que os Deuses conhecem todas as coisas, imagino que alguém que entre no templo com uma consciência correta em si rezaria assim: 'Dai-me, oh Deuses, o que me cabe!' " (i, II)

E assim também ele rezou, em sua longa jornada à Índia, na Babilônia: "Deus do Sol, envia-me sobre a Terra até onde for bom para Ti e para mim; e que eu possa conhecer o bem, e jamais conhecer o mal ou ser conhecido por ele" (i, 31).

Uma de suas preces mais comuns era, segundo Damis, assim: "Concedei, oh Deuses, que eu tenha pouco e não precise de nada" (i, 34).

"Quando entrais nos templos, pelo que rezais?", perguntou para nosso filósofo o Pontífice Máximo Telesino. "Eu rezo", disse Apolônio, "para que a retidão possa imperar, para que as leis permaneçam intactas, para que o sábio seja pobre e os outros, ricos, mas honestamente" (iv 40).
A fé de nosso filósofo no grande ideal de nada ter e ainda assim possuir todas as coisas, é exemplificada em sua réplica ao oficial que demandava como ele pretendia entrar nos domínios da Babilônia sem permissão. "Toda a Terra", disse Apolônio, "é minha, e me é dado que eu a percorra" (i, 21).

Há muitos exemplos de somas de dinheiro sendo oferecidas a Apolônio por seus serviços, mas ele invariavelmente as recusava; e não só isso, mas seus seguidores também recusavam todos os presentes. Quando o Rei Vardan, com verdadeira generosidade oriental, ofereceu-lhe presentes, foram devolvidos; e nisto disse Apolônio: "Vêde, minhas mãos, ainda que muitas, são todas parecidas". E quando o rei perguntou a Apolônio qual presente ele traria para ele da Índia, nosso filósofo replicou: "Um presente que vos agradará, Sire. Pois se minha estada lá me tornar mais sábio, voltarei a vós melhor do que sou agora" (i, 41).

Quando estavam cruzando as grandes montanhas em direção à Índia, diz-se que teve lugar uma conversa entre Apolônio e Damis, a qual nos fornece um bom exemplo de como nosso filósofo sempre usava os incidentes do dia para inculcar as mais elevadas lições de vida. A questão dizia respeito a "embaixo" e "em cima". "Ontem", diz Damis, "estávamos embaixo no vale; hoje estamos em cima, alto nas montanhas, não muito distantes do céu". "Então isto é o que tu queres dizer por 'embaixo' e 'em cima' ", disse Apolônio gentilmente. "Mas é claro!", replicou Damis impaciente, "se penso claramente; que necessidade temos de tais questões inúteis?". "E adquiriste um conhecimento maior da natureza divina estando mais perto do céu sobre o topo das montanhas?", continuou seu mestre, "Pensas que os que observam o céu das alturas montanhosas estão algo mais perto do entendimento das coisas?". "Para falar a verdade", disse Damis, um tanto desconcertado, "eu pensei mesmo que desceria mais sábio, pois estive numa montanha mais alto do que qualquer outro homem, mas temo não saber mais do que antes de subir nela". "Tampouco os outros homens saberão", replicou Apolônio; "tais observações os fazem ver o céu mais azul, as estrelas maiores, e o sol a nascer da noite, coisas sabidas por aqueles que conduzem as ovelhas e cabras; mas como Deus realmente se interessa pelo gênero humano, e como Ele tem vero prazer em seu serviço, o qual é a virtude, a retidão e o senso-comum, eis que nem [o monte] Athos o revelará àqueles que escalam seu cume, nem o Olimpo, que suscita a admiração do poeta, a não ser que a alma o perceba; pois quando a alma, pura e sem mistura, ascender a estas altitudes, juro-te, ela voará muito, muito mais alto do que este Cáucaso altaneiro" (ii, 6).

Novamente, quando em Termópilas, seus seguidores estavam disputando sobre qual seria o local mais alto da Grécia, estando então o Monte Eta em vista. Acontecia de eles estarem bem ao pé da colina onde os espartanos foram derrotados crivados de flechas. Subindo ao cume, Apolônio exclamou: "E eu acho que este é o ponto mais alto, pois aqueles que aqui tombaram por amor à liberdade fizeram-no tão alto como o Eta, e o elevaram muito acima de mil Olimpos" (iv, 23).

Um outro exemplo de como Apolônio transformava acontecimentos casuais em boas ilustrações é o seguinte: Certa vez em Éfeso, em uma das estradas pavimentadas perto da cidade, ele estava falando sobre dividirmos nossos bens com os outros, e como deveríamos naturalmente ajudar uns aos outros. Ocorria que um grupo de pardais estava pousado numa árvore próxima em perfeito silêncio. Subitamente um outro pardal chegou voando e começou a chilrear, como se quisesse dizer aos outros qualquer coisa. Imediatamente todo o bando começou a pipilar também, e voaram todos atrás do recém-chegado. A supersticiosa audiência de Apolônio ficou muito impressionada pelo comportamento dos pardais, e viu nisso um augúrio de alguma coisa importante. Mas o filósofo continuou seu sermão. O pardal, disse ele, convidou seus amigos para um banquete. Um garoto escorregou em um campo próximo e esparramou-se algum grão que ele carregava em uma bolsa; ele recolheu a maior parte e foi-se embora. O pequeno pardal, calhando de encontrar os grãos que sobraram, imediatamente voou para convidar seus amigos para o festim.

Então a maior parte da audiência correu para ver se era verdade, e quando voltaram todos gritando e gesticulando maravilhados, o filósofo continuou: "Vêde que cuidado os pardais têm uns para com os outros, e quão felizes ficam em compartilhar seus bens. Mas nós homens não o aprovamos; antes, se vemos um homem dividindo seus bens com outros homens, chamamo-lo de esbanjador, extravagante, e de outros nomes, e acusamos os homens que recebem a partilha de serem aduladores e parasitas. O que nos resta então senão encerrarmo-nos em casa como aves de engorda, e empanturrarmos nossos estômagos na escuridão até que rebentemos de gordura?" (iv, 3).

Em outra ocasião, em Esmirna, Apolônio, vendo um navio ser carregado, usou a ocasião para ensinar às pessoas a lição da cooperação. "Olhai a marujada!", ele disse. "Vêde como alguns aprontaram os botes, alguns subiram as âncoras e as prenderam, alguns dispuseram as velas para aproveitar o vento, como outros ainda verificaram a proa e a pôpa. Mas se um único homem falhar em desempenhar uma só de suas tarefas, ou negligenciar suas atribuições, sua navegação será ruim, e terão a tempestade no meio deles. Mas se rivalizarem entre si, tentando equiparar-se cada um a seus companheiros, tal barco terá céus favoráveis, e um bom tempo e boa viagem sucederão" (iv, 9).

Novamente, em outra ocasião, em Rodes, Damis perguntou-lhe se ele conhecia algo maior que o famoso Colosso. "Sim", replicou Apolônio; "o homem que anda nos honestos sendeiros da sabedoria que nos dá a saúde" (v, 21).

Também há um número de exemplos de respostas satíricas ou sarcásticas dadas por nosso filósofo, e de fato, a despeito de seu temperamento usualmente grave, ele não infreqüentemente zombava de seus ouvintes, e às vezes, se podemos dizer assim, ironizava sua estultice (vide especialmente iv, 30).

Mesmo em tempos de grande perigo esta característica se mostrava. Um bom exemplo é a resposta à delicada pergunta de Tigelino: "O que pensais de Nero?". "Penso melhor dele do que vós", redargüiu Apolônio, "pois vós acreditais que ele deveria cantar, e eu penso que ele deveria manter-se em silêncio" (iv, 44).

Também sua resposta a um jovem Creso [Creso, rei da Lídia, ficou famoso por sua enorme riqueza - NT] da época é tão irônica quanto sábia; "Jovem senhor", disse ele, "penso que não sois vós que possuís vossa casa, mas que vossa casa vos possui" (v, 22).

Do mesmo estilo também é a resposta a um glutão que jactava-se de sua gulodice. Ele copiava Hércules, dizia, que era famoso tanto pela comida que comia quanto por seus trabalhos.

"Sim", disse Apolônio, "pois ele era Hércules. Mas vós, que virtude tendes, oh montanha de gordura? A única coisa que chama a atenção em vós é a possibilidade de explodirdes" (iv, 23).

Mas voltemos a momentos mais sérios. Em resposta à ardente súplica de Vespasiano, "ensina-me o que deveria fazer um bom rei", Apolônio diz-se que respondeu algo nestes termos:

"Vós me pedis o que não pode ser ensinado. Pois a realeza é a maior coisa ao alcance do mortal; e não é ensinada. Mas vos direi o que, se fizésseis, faríeis bem. Não considereis a riqueza que é acumulada - em que ela é superior à areia reunida casualmente? Nem aquela que provém de pesadas taxações que oprimem os homens - pois o ouro que vem das lágrimas é vil e negro. Empregareis melhor do que qualquer rei a riqueza, se atenderdes às necessidades dos desfavorecidos e garantirdes a riqueza dos que possuem muito. Temei o poder de fazer o que vos aprouver, assim o usareis com maior prudência. Não apareis as espigas que sobressaem dentre as outras - pois Aristóteles não é justo neste ponto (vide Chassang, op. cit., p. 458, para uma crítica desta declaração) - mas antes separai sua animosidade como o joio dentre o grão, e intimidai os agitadores em disputa não dizendo 'Eu vos puno', mas 'Irei fazê-lo'. Submetei-vos à lei, oh Príncipe, pois fareis leis mais sábias se vós mesmos não desprezardes a lei. Sê mais reverente do que nunca aos Deuses; grandes são as dádivas que recebestes deles, e orai por grandes coisas (Isto foi antes de Vespasiano tornar-se Imperador). No que tange ao estado, agi como rei; no que tange a vós mesmos, agi como um homem comum" (v, 36).

E assim sempre do mesmo modo, dando bom conselho e demonstrando um profundo conhecimento dos assuntos humanos. E se vamos supor que se trata de mero exercício retórico de Filóstrato e não é baseado na substância do que Apolônio disse, então devemos ter uma opinião melhor do retórico do que o resto de seus escritos afiança.

Existe um diálogo Socrático extremamente interessante entre Tespésion, o abade da comunidade Gimosofista, e Apolônio, sobre os méritos relativos dos modos grego e egípcio de representar os Deuses. Segue-se algo como assim:

"Mas! Vamos imaginar", disse Tespésion, "que os Fídias e os Praxíteles foram ao céu e tiveram impressões das formas dos Deuses, e assim fizeram simulacros deles, ou foi outra coisa que os fez esculpí-los?"

"Sim, foi outra coisa", disse Apolônio, "algo prenhe de sabedoria".
"O que foi? Certamente não podeis dizer que foi algo além de mera imitação!"
"A imaginação os conduziu - um trabalho mais sábio que a imitação; pois a imitação somente apresenta o que foi visto, enquanto que a imaginação apresenta o que jamais foi contemplado, concebendo-o em relação à coisa que realmente existe".

A imaginação, diz Apolônio, é uma das mais poderosas faculdades, pois nos habilita a chegar mais perto das realidades. Geralmente se supõe que a escultura grega era meramente uma glorificação da beleza física, e bastante desespiritual em si mesma. Era uma idealização das formas e feições, membros e músculos, uma glorificação vazia do físico com nada é claro correspondendo a ela realmente na natureza das coisas. Mas Apolônio declarou que ela traz-nos para mais perto do real, como Pitágoras e Platão disseram antes dele, e como todos os sábios ensinaram. Ele queria dizer isto literalmente, e não vaga e fantasticamente. Ele declarou que os protótipos e idéias das coisas são as únicas realidades. Ele queria dizer que entre a imperfeição terrena e o mais excelso arquétipo divino de todas as coisas existiam graus de crescente perfeição. Queria dizer que dentro de cada homem existe uma forma da perfeição, embora é claro que ainda não absolutamente perfeita; que o anjo no homem, seu daimon, era de uma beleza divinal, o resumo de todos os mais finos traços que apresentou em suas muitas vidas na Terra. Os Deuses também pertencem ao mundo dos arquétipos, dos modelos, das perfeições, o mundo celeste. Os escultores gregos conseguiram entrar em contato com este mundo, e a faculdade que usaram foi a imaginação.

Esta idealização da forma era um modo digno de representar os Deuses; "mas", diz Apolônio, "se entronizardes um falcão ou uma coruja ou um cão em vossos templos, para representar Apolo ou Atena ou Hermes, podeis dignificar os animais, mas fareis os Deuses perder dignidade".

A isto Tespésion replicou que os egípcios não pretendiam dar nenhuma forma específica aos Deuses; eles lhes atribuíam meramente símbolos aos quais era associado um significado oculto.

"Sim", responde Apolônio, "mas o perigo é que as pessoas comuns adorem estes símbolos e concebam idéias deformadas sobre os Deuses. O melhor seria não ter representação alguma. Pois a mente do adorador pode formar e adequar para si uma imagem do objeto de sua adoração melhor do que qualquer arte".

"Certamente", contrafez Tespésion, e então acrescentou maliciosamente: "Havia um velho ateniense por aí - não tolo - chamado Sócrates, que jurava pelos cães e gansos como se fossem Deuses".

"Sim", replicou Apolônio, "ele não era tolo. Ele jurava por eles não como sendo Deuses, mas para evitar de jurar pelos Deuses" (iv, 19).

Esta é uma encantadora passagem de sagacidade, do egípcio contra o grego, mas todos estes diálogos podem ser considerados como sendo os exercícios retóricos de Filóstrato antes do que de Apolônio, que ensinava "como tendo autoridade", como se "de uma trípode". Apolônio, o sacerdote da religião universal, poderia ter apontado o lado bom e o lado ruim tanto da arte religiosa grega quanto da egípcia, e certamente ensinou o caminho mais elevado do culto desprovido de símbolos, mas ele não defenderia um culto popular contra um outro. No diálogo acima há um nítido preconceito contra o Egito e uma glorificação da Grécia, e isto ocorre de modo marcante em diversos outros diálogos. Filóstrato era um campeão da Grécia contra todas as outras terras; mas Apolônio, cremos, era mais sábio que seu biógrafo.

A despeito da roupagem literária que é posta sobre os discursos mais longos de Apolônio, eles contêm muitos nobres pensamentos, como podemos ver pelas seguintes citações das conversas de nosso filósofo com seu amigo Demétrio, que estava tentando dissuadí-lo de enfrentar Domiciano em Roma.

"A lei", disse Apolônio, "nos obriga a morrer pela liberdade, e a natureza ordena que morramos por nossos pais, nossos amigos, ou nossos filhos. Todos os homens estão ligados por estes deveres.

Mas um dever superior é imposto sobre o sábio; ele deve morrer por seus princípios e a verdade que defende mais cara que a vida. Não é a lei que lhe impõe a escolha, não é a natureza; é a força e coragem de sua própria alma. Mesmo que o fogo e a espada lhe aflijam, não sobrepujarão sua resolução ou o obrigarão à menor falsidade; mas ele guardará os segredos das vidas alheias e tudo o que lhe for confiado à honra tão religiosamente como os segredos da iniciação. E eu sei mais que os outros homens, pois sei que de tudo o que sei, algumas coisas são para o bom, outras para o sábio, outras para mim mesmo, outras para os Deuses, mas nada para os tiranos.

"Além disso, penso que um homem sábio não faz nada sozinho ou por si mesmo, e nenhum pensamento seu é secreto, pois ele mesmo é sua testemunha. E se o ditado famoso 'conhece-te a ti mesmo' é de Apolo ou de algum sábio que aprendeu a conhecer-se e proclamou-o como um bem para todos, penso que o homem sábio que conhece a si mesmo e traz seu espírito em constante camaradagem, para lutar à sua destra, não temerá o que o vulgo teme, nem condescenderá em fazer o que a maioria dos homens faz sem a menor vergonha" (vii, 15).

Nisto temos o verdadeiro desdém filosófico diante da morte, e também o calmo conhecimento do iniciado, do confortador e do conselheiro de outros, a quem os segredos de suas vidas foi confessado, e que nenhuma tortura poderia jamais extrair de seus lábios. Aqui, também, temos a plena percepção do que é consciência, da impossibilidade de ocultar o menor traço de mal no mundo interior; e ainda o fulgurante brilho de uma ética superior que faz a conduta habitual das massas parecer surpreendente - "o que eles fazem, e sem vergonha alguma".

(Fonte: Hermanubis)

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

O Mistério da Morte - Eliphas Levi



A transição dos espíritos ou o mistério da morte. Quando o homem adormece em seu último sono, cai primeiramente numa espécie de sonho, antes de acordar do outro lado da vida. Cada um vê então, numa bonita fantasia ou num terrível pesadelo, o paraíso ou o inferno nos quais acreditou durante sua existência mortal.

É por esse motivo que muitas vezes a alma atemorizada se lança violentamente na vida que ela acaba de deixar e que mortos, bem mortos quando os sepultamos, acordam vivos sob o túmulo. A alma então, não mais ousando morrer, consome-se em esforços inúteis para conservar a vida leguminosa, por assim dizer, de seu cadáver. Ela aspira durante seu sono o vigor fluídico dos vivos e o transmite ao corpo enterrado cujos cabelos crescem como uma erva daninha e cujo sangue vermelho colore os lábios. Esses mortos tornam-se vampiros; vivem conservados por uma doença póstuma que tem sua crise, como as outras, e que termina por convulsões horríveis durante as quais o vampiro, procurando destruir a si próprio, devora os braços e as mãos. As pessoas sujeitas a pesadelos podem fazer uma idéia do horror das visões infernais. Essas visões são o castigo de uma crença atroz e perseguem sobretudo as crenças supersticiosas e os ascetas fanáticos: a imaginação está povoada de atormentadores, e esses monstros, no delírio que se segue à morte, aparecem à alma com uma espantosa realidade, cercando-a, atacando-a e dilacerando-a procurando devorá-la. O sábio, ao contrário, é acolhido por visões felizes, acredita ver seus amigos de outrora virem a seu encontro e lhe sorrirem. Mas tudo isso, dissemos, é apenas um sonho, e a alma não tarda a acordar. Então ela mudou de meio, está acima da atmosfera que se solidificou sob os pés de seu envoltório, agora mais leve. Este envoltório é mais ou menos pesado; há os que não conseguem se erguer de seu novo solo; há outros que, ao contrário, sobem e pairam livremente no espaço, como águias. Mas os liames de simpatia os ligam sempre à terra na qual viveram e sobre a qual se sentem viver mais do que nunca, porque estando destruído o corpo que os separava, têm consciência da vida universal e participam das alegrias e dos sofrimentos de todos os homens. Eles vêem Deus como ele é, isto é, presente em toda parte na precisão infinita das leis da Natureza, na justiça que triunfa sempre através de tudo o que acontece, e na caridade infinita que é a comunhão dos eleitos. Eles sofrem, dissemos, mas têm esperança porque amam e estão felizes por sofrer. Eles saboreiam pacificamente a doce amargura do sacrifício e são os membros gloriosos, mas que sangram sempre, da grande vítima eterna. Os espíritos criados à imagem e semelhança de Deus são criaturas como ele, mas, como ele, só podem criar suas imagens. As vontades audaciosas e desregradas produzem larvas e fantasmas, a imaginação tem o poder de formar coagulações aéreas e eletromagnéticas que refletem num instante os pensamentos e sobretudo os erros do homem ou do círculo dos homens que os coloca no mundo. 


Essas criações de abortos excêntricos esgotam a razão e a vida daqueles que os fazem nascer, e têm por característica geral a estupidez e o malefício, porque são os tristes frutos da vontade desregrada. Aqueles que não cultivaram sua inteligência durante sua existência ficam, após a morte, num estado de torpor e de estupor cheio de angústias e de inquietude; têm dificuldade em retomar a consciência de si mesmos, estão no vazio e na noite, não podem nem subir, nem descer, e são incapazes de se corresponder seja com o céu, seja com a terra. São tirados pouco a pouco desse estado pelos eleitos que os instruem, os consolam e os esclarecem; depois conseguem ser admitidos para novas provações cuja natureza nos é desconhecida, porque é impossível que o mesmo homem renasça duas vezes na mesma terra. Uma folha de árvore, depois que cai, não se liga mais ao galho. A lagarta torna-se borboleta, mas a borboleta nunca uma lagarta. A natureza fecha as portas atrás de tudo o que passa e impele a vida para adiante. O mesmo pedaço de pão não poderia ser comido e digerido duas vezes. As formas passam, o pensamento fica e não mais retorna o que se usou uma vez.

Eliphas Levi

domingo, 19 de setembro de 2010

A Oração no Martinismo



Os leitores atentos de Louis-Claude de Saint-Martin conhecem a importância que o Filósofo Desconhecido atribui à prática da oração. Em geral, temos a tendência de pensar que é isso que o diferencia das práticas de seu primeiro instrutor, Dom Martinez de Pasqually, que preconizava um método mais oculto, a teurgia. Todavia, se acharmos que vale a pena estudar os documentos relativos aos trabalhos dos Elus-Cohen, rituais e catecismos que já há alguns anos estão à disposição dos pesquisadores, poderemos constatar que essa diferença não é tão importante quanto possa parecer. A oração, na verdade, ocupa um lugar muito importante na teurgia dos Elus-Cohen.



A prece segundo Dom Martinez de Pasqually

A teurgia de Pasqually é uma santa magia. Seu propósito essencial é oferecer aos Elus-Coben a purificação mais perfeita possível do corpo, da alma e do espírito, a fim de fazer deles "receptáculos' dignos das mais elevadas "comunicações" angélicas . Os iniciados Cohen, assim purificados, ficavam então capacitados a entrar em contato com os seres angélicais, intermediários necessários aos homens desde sua queda, para receberem as diretrizes divinas. Ao contrário da magia vulgar, a teurgia de Pasqually não utiliza nenhuma arma "mágica", bordão ou espada, sendo seu utensílio favorito o incensário. E verdade que ele utiliza procedimentos teúrgicos habituais da magia cerimonial, traçados de círculos e palavras de poder (hieróglifos de nomes angélicos), respeito às fases da lua, mas também faz uso da oração de uma forma importante.

Sejam provenientes de Dom Martinez ou tiradas da sagrada Escritura, as invocações ocupam um lugar muito importante nas práticas Elus-Cohen. Num ritual tão essencial para o progresso de um Elu-Cohen como o intitulado "Preces e trabalhos para a reconciliação do homem de desejo com seu ser espiritual" os Salmos ocupam um lugar privilegiado. Nessa cerimônia, o Cohen utiliza os sete primeiros salmos para as suas prosternações na direção dos quatro pontos cardeais. O primeiro é recitado de frente para o Oeste, o segundo de frente para o Norte, o terceiro de frente para o Sul, o quinto e o sétimo de frente para o Leste e o quarto e sexto no centro. A leitura desses textos provavelmente se destinava a auxiliar o Cohen a alcançar a purificação necessária para atingir um estado ideal de receptividade espiritual. Essa técnica não foi inventada por Dom Martinez. Ela tem suas raízes nas antigas práticas do esoterismo judaico, pois o Zohar e o Talmud testemunham essa utilização em muitas passagens. A esse respeito, a salmodia do salmo 118 sempre foi particularmente recomendada para a manutenção de um laço transcendental com o Divino. A. Kaplan defende o ponto de vista de que os Salmos eram utilizados como técnica de meditação, como a dos mantras, para atingir estados elevados de consciência.

Nos trabalhos diários dos EIus-Cohen, os Salmos ocupam um lugar relativamente importante. O caminho dos êmulos de Dom Martinez é, com efeito, pontuado por uma oração, "a prece das seis horas". Cada Elu-Cohen deve dedicar- se diariamente a esse trabalho, repartido em quatro fases (uma a cada seis horas). A primeira prece é feita de manhã às seis horas, a segunda ao meio-dia, a terceira às dezoito horas e a última à meia-noite. Nessas orações, os salmos ocupam um lugar importante. As outras preces utilizadas nesses trabalhos são compostas de numerosas invocações "do santo nome de Jesus ( Yeschouá - NT) De preces à Virgem e ao anjo da guarda. O "Pater" e a "Ave Maria" não estão ausentes dessas práticas. A oração da meia-noite não encerra a jornada de um EIu-Cohen, que termina com a belíssima "prece que deve ser rezada quando se está recolhido, prestes a adormecer"

Os "Catecismos dos Comandantes do Oriente" (ou seja, do grau que precede o de Réaux-Croix, último da hierarquia Cohen) igualmente salientam a importância da prece. Indicam que, antes de iniciar seus trabalhos, o aprendiz Réaux-Croix deve "retirar-se do turbilhão do mundo; dispor-se pela prece, recitando os sete salmos que ele dividirá em três partes a cada dia: três salmos de manhã, os dois seguintes depois do meio-dia, e os dois últimos ao pôr-do-sol".

Dom Martinez recomenda a seus discípulos que rezem todo dia o oficio do Espírito Santo. Ele também lhes aconselha que recitem toda quinta-feira o "miserere mei" (prostrados na direção do Oriente) c o "de Profundis" (com o rosto tocando o chão). Por suas preces, os Elus-Cohen manifestam o poder do Verbo. Essa prece "deve ser a expressão da faculdade da palavra que constitui o homem, semelhança divina Como podem ver, o caminho de um Elu-Cohen nada tinha a invejar de um beneditino, e provavelmente essa disciplina exigente foi a responsável pela desistência de muitos discípulos de Dom Martinez.



A prece segundo Louis-Claude de Saint-Martin

Se parece provável que Saint-Martin tinha uma atração natural pela oração, é bem possível que essa tendência tivesse sido desenvolvida por seu trabalho de Elu Cohen. Com efeito, essa preocupação aparece desde os seus primeiros passos no caminho Cohen e seu "Livro Vermelho" o caderno onde o jovem iniciado anotava suas reflexões, testemunha isso em numerosas passagens: "Purifica teu corpo, e em seguida apresenta-o à prece; o resto se fará naturalmente e este é todo o segredo". Um outro texto, da época em que Saint-Martin era um Elu-Cohen ativo, evidencia esse interesse. Saint-Martin explica: "A prece é o verdadeiro alimento da alma, é quando ela coloca principalmente em ação todas as suas faculdades; também é dela que ele retira suas maiores forças e toda evidência da luz . O estado da alma na oração é um combate em que ela se despoja de tudo que lhe seja estranho, para se renovar com toda pureza, claridade e sublimidade de sua natureza".

O interesse pela oração cresce continuamente no espírito do Filósofo Desconhecido e os textos em que ele se expressa a esse respeito são muito numerosos. O primeiro a chamar nossa atenção é o que tem por título "A Prece ". E um pequeno tratado sobre o que é a oração e o modo de praticá-la. Saint-Martin salienta que a prece possui um aspecto fundamental. Ela é "como a consumação ", a vivência de verdades que o conhecimento e o estudo apenas entremostram. Ela é participação do conhecimento, ela faz penetrar naquele "magismo divino que é a vida secreta de todos os seres". Essa participação no mistério da Criação, Saint Martin a chama "a admiração ". Essa prece é uma contemplação. Se a prece propiciava longas invocações com Dom Martinez, a de Saint-Martin se ocupa pouco com palavras, ela é o silêncio do ser na presença do Ser. Pouco importam as palavras; é o coração que deve falar nessa comunhão, não a cabeça. Não há qualquer necessidade "dessas preces que somos obrigados a recitar por toda parte, espremendo-as em fórmulas ou em pueris e escrupulosos hábitos". O trabalho de adoração que Saint-Martin preconiza consiste em abandonar a vontade humana para permitir que circule a vontade divina. Abrir o coração para ali deixar entrar aquele que nada mais deseja senão penetrar em seu santuário, o coração do homem. Nessa comunhão não é mais o homem que ora a Deus, mas Deus que ora no homem.

Mas essa comunhão total o discípulo só atinge depois de certa preparação. Pois "essa obra é tão importante que deves te guardar de desejá-la antes que tuas substâncias estejam suficientemente puras e fortes para suportá-la" pois o puro não se mistura com o impuro. Além disso, Saint-Martin dá um conselho àquele que deseja conhecer essa inefável luz: "Purifica-te, roga, recebe, age, toda a obra está contida nesses quatro tempos ". Segundo Saint-Martin, a prece constitui a chave fundamental da jornada mística, da iniciação, que, para ele e Dom Martinez, regenerará o quaternário menor. Essa prece se parece com a meditação, com a comunhão silenciosa com Deus. E o meio pelo qual o homem pode atingir as esferas superiores, de que as esferas visíveis são tão-somente imagens imperfeitas.

Vimos que para Dom Martinez a prece parecia ser essencialmente vocal, enquanto que até agora, no que se refere a Saint-Martin, acentuamos o lado "silencioso". Mas observemos que Saint-Martin vê nos dois procedimentos virtudes que são ao mesmo tempo diferentes e complementares. Segundo ele, a prece mental tem uma força igualmente defensiva e atrativa com relação ao Bem, enquanto que a prece vocalizada acrescenta a essas mesmas qualidades o poder "de vencer o inimigo, o que a torna superior". A prece muda é aconselhada pelo Filósofo Desconhecido para aquecer o coração, quando este está seco e vazio de Deus. Mas, assim que o coração esteja pleno dessa Presença, ele aconselha a prece verbal, pois que então ela é o "ser!,". verbo Para Saint Martin a prece é um ato, o ato mais puro de que o homem é capaz O pedido do homem unido ao pensamento de Deus pela vontade se manifesta na ação, e ao imitar Deus essa ação é Verbo.

Saint-Martin nos deixou um belo testemunho sobre a oração, as "Dez Preces' ( já publicado no site Hermanubis - NT) Provavelmente ele compôs esse coletânea de orações já no fim da vida. Esses textos testemunham que a prática da oração foi uma constante na vida interior do Filósofo Desconhecido.

Deixaremos que ele conclua com um conselho que resume perfeitamente o propósito deste trabalho: "O segredo de nosso progresso consiste na oração, o segredo da prece na preparação, o segredo da preparação numa conduta pura, o segredo de uma conduta pura no temor a Deus, o segredo do temor a Deus em seu amor. Assim, o amor é o princípio e o centro de todos os segredos.

Christian Rebisse
(fonte: Hermanubis)

A ciência de entrar dentro do Silêncio




O objetivo da meditação é a experimentação do Divino.

"Antes que os olhos possam ver, não deverão mais poder chorar. Antes que o ouvido possa escutar, deverá ter perdido sua sensibilidade. E antes que a Voz possa falar em presença dos Mestres, deverá ter perdido o poder de ferir". E o que podemos ler no Lumiére sur lê Chemin (Luz do caminho). Poderíamos acrescentar, é claro: "Antes que a voz do Mestre possa ser ouvida, o aspirante deverá ter calado as vozes do medo, da cólera, da avidez, da inveja, da luxúria e todas as outras vozes pelas quais a Sombra confunde o espírito do buscador ".


Mas em nossa época de recompensas imediatas e de compensações rápidas, é difícil suprimir a necessidade inconsciente de iluminação instantânea. Conseqüentemente, muitos estudantes bem intencionados pensam que aplicando com fé as técnicas antigas, serão recompensados com o presente último, o presente da iluminação espiritual, corno prometido pelos sábios que desenvolvem e praticam essas técnicas desde muito tempo. Então, se escutarmos atentamente, poderemos ouvir a queixa, velada mas clara, da maioria dos estudantes que não fizeram progresso ao menos como desejavam.


Infelizmente, esse fenômeno está mais fortemente ligado ao fenômeno moderno de ruptura com o passado do que à incapacidade do estudante sincero em se aplicar a sua tarefa. Pois, da mesma forma que a ciência, uma vez liberada do elemento filosófico, que a ancora ao conjunto da vida e dos Valores humanos, deixa de ser a "ciência" em seu sentido tradicional, e é transformada em escravo servil à tecnologia, assim também as técnicas esotéricas antigas, privadas dos elementos fisiológicos aos quais estavam ligadas para a eficácia, tornam-se simples robô nas mãos daqueles que estão desconectados de suas raízes psíquicas e espirituais. Já é bem sabido que, para os pitagoricos, o problema da espiritualidade não era, na verdade, tornar-se divino mas, antes, tomar consciência do divino nos princípios universais. O processo piragorico concentrava-se essencialmente sobre isto, pois eles sabiam que exatamente o que detém o aspirante em seu desenvolvimento da consciência divina, nos princípios universais,tanto quanto hoje com o ontem, é um estado interior de cegueira relacionado com a psicologia de cada um.


Não nos esqueçamos de que, naquela época, não havia realmente uma classe média, mas sim unta classe superior e uma classe inferior. E embora houvesse certamente traumas psicológicos entre as pessoas da alta sociedade, estes não eram tão numerosos quanto os que podiam ser encontrados na classe inferior, Além do mais, entre os piragoricianos, os aspirantes provinham em grande parte das classes abastadas; e apesar disto, antes de serem aceitos na escola, eles eram severamente testados no que tocava asua predisposição psicológica. E uma vez aceitos, não havia garantia de progresso, pois isto deveria ser conquistado, e não concedido, A preparação psicológica era, e continua a sê-lo, um imperativo vital para o trabalho espiritual.


Após ter sido aceito entre os pitagoricos, o aspirante era primeiramente submetido a um período de silêncio que durava cinco anos. Durante esse "período de silêncio', o aspirante deveria aprender a guardar para si mesmo as suas próprias opiniões, a reconhecer e suspender suas próprias tendências em tecer considerações sobre cada assunto. Em outras palavras, o aspirante deveria aprender a ser silencioso interiormente, para ser capaz de escutar. De tal maneira que, quando viesse a falar, estivesse extremamente consciente de suas motivações e do significado de suas palavras. O medo havia sido vencido, os traumas psicológicos regulados e, enfim, a vontade teria se tornado verdadeiramente livre.


No mundo de hoje, embora os testes para o aspirante sejam muito mais sutis, a maior parte dos estudantes trabalha com a concepção errônea de ter investido determinado numero de anos no estudo dos ensinamentos de tal filosofia ou escola de mistério ou de que "o tempo de serviço" deve ser uma garantia de seu progresso. Nada pode estar mais longe da verdade! Pois antes e a menos que se tenha obtido êxito em comer porções substanciais de nossa própria sombra, permaneceremos privados desses elementos psicológicos que são indispensáveis ao avanço espiritual.


Saiba que o segredo de desenvolver a ciência de penetrar no silêncio deve ser encontrado na consciência de si, na interrogação de si, e na honestidade frente a frente a si mesmo. 


Primeiramente, deve-se estar consciente de suas reações interiores às circunstâncias e acontecimentos exteriores. Depois, deve-se ser capaz de se perguntar por que as reações em questão são experimentadas. E, enfim, deve-se ser suficientemente honesto consigo mesmo e aceitar examinar em detalhes todas as respostas que podem surgir para este auto-interrogatório. Esta abordagem demonstrou ser muito eficaz para integrar as energias discordantes que rivalizam para manter nossa atenção na cena de nossa consciência.


(fonte: Hermanubis)

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Algumas Virtudes Necessárias em Maçonaria



Tendo colocado de lado, não vou dizer tudo o que faz a alegria de viver, mas pelo menos aquilo que preenche a indulgência dos nossos costumes e coloca um sorriso na boca da nossa natureza humana, retomei o cajado do peregrino e, com a minha mochila às costas, carregada de preceitos antigos, exemplos da experiência dos meus ancestrais, tomei a estrada que leva ao outro lado do mundo, em direcção aos países onde encontramos na sua pureza as três colunas intactas do nosso Templo: Sabedoria, Força e Beleza.
Tendo viajado algum tempo – o tempo de um sonho! – nesse “Bosque Sagrado”, venho, meus Irmãos, falar-vos das conclusões que tirei durante minha grande viagem sobre algumas virtudes, ou mais exactamente sobre alguns comportamentos maçónicos.
Efectivamente dei por mim nesse Templo ideal, dos homens de boa vontade – não dos santos – onde decorriam discussões sobre assuntos do nosso século. E precisamente porque sabiam bem que não eram santos, esses homens sábios tinham instituído um código para regular as discussões. Pois faz falta um código que regule todas as assembleias de homens. Faz falta um código para que cada um tenha o direito de exprimir o seu pensamento. Faz falta um código para que cada um possa criticar o pensamento do outro. Faz falta um código para que seja possível tirar uma síntese de dois pensamentos aparentemente divergentes. Faz sobretudo falta um código para que a linguagem de uns e de outros possa ao mesmo tempo servir fielmente cada um dos modos de pensar e exprimir dos seus autores e ao mesmo tempo adaptar-se ao trabalho de síntese que é o objectivo essencial de toda a assembleia humana.
Esses homens do meu sonho falavam a mesma língua, apesar de aparentarem provir de todos os países do mundo.
Esses países tão diversos, eram as suas origens…
Mas a longa viagem que eles impuseram a si mesmos tinha suavizado as rugosidades e as dissemelhanças que pudessem ter existido no passado entre as suas línguas respectivas.
Esses homens, cheios de sabedoria, falavam então a mesma língua. Quando um exprimia o seu pensamento, imbuído tanto de uma recordação antiga como da aspiração de encontrar um novo ideal, os outros, numa transposição imediata imaginavam-se no lugar dele, de modo a poder apreender em detalhe e integralmente o fundamento do pensamento que estava a ser expresso ante eles.
Eles tinham concluído que, aquilo que há de mais belo no ser humano é a sua capacidade de pensar.
Para alguns dos presentes na assembleia, esse pensamento era científico;
Para outros, vinha da espontaneidade da alma;
Para todos – tanto materialistas com místicos – esse pensamento guiava a humanidade de encontro a um ideal.
Mas qual era o objecto desse pensamento?
Notei que o respeito profundo que nutriam pelo pensamento parecia regular a escala de valores desses iniciados.
Nas sua longas assembleias, os jogos que alimentavam o espírito e a missão desinteressada que os unia, tinham moldado os seus comportamentos mais do que a mera educação era capaz de o fazer. Produziram assim uma infinita cortesia, que podia ser confundida por uma verdadeira deferência, tanto que cada um dava de si mesmo, colocando-se, como um cavaleiro, à disposição do orador em uso da palavra num dado momento, para o secundar na complexa tarefa da procura da verdade.
Esse sentimento de deferência da assembleia face ao orador, comportava na sua base um outro mais amplo: o respeito pela pessoa humana. O respeito daqueles que sabem o que é o trabalho para o trabalhador. O infinito respeito que têm aqueles que escutam para com aquele que fala, para com aquele que só fala depois de um silêncio em que longamente reflectiu. Para com aquele que teve a força de ordenar o seu pensamento, a coragem de concluir uma tese, e que deposita agora aos pés da assembleia a sua obra.
Incontestavelmente, parecia manifestar-se ali um poder transcendente que ligava os homens daquela assembleia. Muito tempo trabalharam juntos, respeitando as regras tutelares da sua Ordem, o que lhes impôs um longo silêncio antes que ousassem tomar a palavra. Silêncio que os formou aos poucos por intermédio da meditação – a meditação que, entre eles não é uma palavra vã.
Mas a seriedade do seu propósito, a importância que dão à obra conjunta, o sentido de responsabilidade que anima cada um deles, face a si mesmos e face aos outros, faz com que quando um deles inicia uma exposição, todos lhe dedicam a mais apaixonada atenção – se me é permitido, apenas desta vez sem exemplo, usar o termo paixão, sobre aquele lugar onde apenas reina a pureza…
Mas o dedo de Deus chamou-me à Ordem (é que os Deuses ofendem-se quando os homens se querem passar por puros!), e o meu sonho teve um fim brusco, pois dei comigo no caminho de regresso outra vez antes de poder investigar mais além…
Com o meu cajado de peregrino na mão, a minha pesada mochila sobre as costas – pesada agora de toda a sabedoria dos antigos, não certamente da minha – eu sonhava enquanto caminhava de regresso a esta Loja e até vós, meus Irmãos, como muitas vezes sonho.
Pensei numa Loja – a do sonho – e depois noutra – a nossa. Meditei sobre aqueles sábios e o seu carácter. Num dado momento vocês apareceram-me todos numa longa cadeia de união, cada um com as qualidades que vos são próprias, cada um na vossa encantadora individualidade, cada um firmando o precioso pavimento mosaico do nosso Templo e da sua extraordinária egrégora. Não sabereis jamais o quanto vos amei a todos nessa longa meditação.
Sonhei que, para progredirmos ainda mais, nos faltava tempo. Que para progredirmos ainda mais faltava sermos indulgentes uns com os outros. Que a serenidade dos grandes iniciados não pode ser adquirida em poucos anos. São necessárias provas, e mais tarde a força para decantar essas mesmas provas como quem decanta um velho tinto de Bordéus. E sonhei que no nosso vale de lágrimas que é a vida, as coisas eram bem diferentes desse “Bosque Sagrado” do qual regressava agora a passos lentos.
Lá, tudo era calma e pureza. É por isso fácil pensar de modo claro e escutar com reverência.
Mas aqui, os pobres homens que vestem os mesmos ornamentos, que se cingem aos mesmos rituais, mas que são desafortunados Irmãos no seu século de infortúnio, estes daqui adoptaram uma palavra de que fazem grande alarido, porque reconheceram que era necessário suportarem-se uns aos outros sem criar celeumas. Essa palavra é Tolerância!
Considerarei a palavra e meditei sobre ela… Conforme o meu espírito se inclinava para aquela Loja no alto, que é agradável ou para estas que temos, que despertam o sarcasmo, interpretava a noção de Tolerância de modo muito diferente.
Aquela lá do alto dizia-me que a Tolerância tinha como seu activo, entre outros benefícios profanos, a paz religiosa e, nos nossos templos, lograva uma compreensão mais ampla entre os Irmãos, uma convivência mais humana de todas as diferenças sociais. Já o sarcasmo recordava-me, pelo contrário, coisas abomináveis. Tolerar-se?! Tolerar alguém?! Mas que pobre noção humana, tão longínqua da fraternidade! Tolerar-se, é o mesmo que deixar dizer, deixar fazer, deixar estar como está, permitir o absurdo pela indiferença, permitir o erro pela sua simples existência. Em todo o caso, Tolerar é esquecer rápido, deixar passar…
Concluía, pela milésima vez durante a minha existência, que o sarcasmos é sempre mau conselheiro.
Porquê tanto fel? Porquê ficar preso naquilo que não serve a ninguém, naquilo que é triste?
Quem foi o grande homem que pronunciou estas palavras: “os pessimistas são espectadores”?
Ora, a missão dos homens, assim me parece, não é a de ser simples espectadores… Cada um de nós sabe que há uma tarefa a cumprir. É para a tornar mais ligeira – às vezes até mais doce – que nós nos reunimos aqui, em Loja. Se a tristeza nos invade por vezes, pois a vida é rude, deixamos de vir; e é no nosso cantinho íntimo que repisamos as nossas misérias, recalcamos os nossas melancolias, relemos o nosso Schopenhauer, mesmo depois de aqui termos lido Montaigne!
Perante esse dilema eterno, o de Tolerar para deixar estar, sonhei que, em vez dele, tínhamos chegado a uma outra noção, à qual nos ligámos com entusiasmo no meu sonho. A noção do amor fraternal, aquela que pode facilmente unir-nos. Sem precisar de “Tolerar” o intolerável. Sem precisar de ser exposto ao pior do carácter humano e ao à opinião medíocre.
Assim, o que faz falta não é tolerar as imperfeições e ideais mal formadas. O que faz falta é trazer para aqui o melhor de nós mesmos, deixando lá fora as coisas que queremos que os outros tolerem em nós. Avançar tranquilos, trabalhando na nossa Loja, cada um de nós isoladamente e em colectivo, obrigando-nos a jamais chocar ninguém com as nossas palavras ou actos. Há tantas formas na nossa admirável língua de enunciar os nossos propósitos e ainda assim conservar a nossa personalidade! Isso é que é ter formação maçónica. Isso é que é ter cultura intelectual. E a superioridade da formação maçónica sobre a formação intelectual está no seu altruísmo.
Assim, meus Irmãos, aqui, nesta Loja, tudo pode ter lugar, porque estamos aqui para amar o nosso próximo. Tudo pode ter lugar, e não ser simplesmente “tolerado”.
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R. L. “Les Amitiés Internationales”, in “Les Cahiers de la Grande Loge de France”, Setembro de 1949
Tradução e Adaptação: GRUPO DE ESTUDOS MAÇÓNICOS

sexta-feira, 10 de setembro de 2010



Porque tu és o que eu sou, tu és o que eu faço, tu és o que eu digo. Tu és todas as coisas e nada existe distinto de ti, tu és o que não é, tu és o que chegou a ser e o que não chegou a ser. Tu és o Pensamento que se tem, o pai que gera a obra, o Deus que actua e o bem que produz todas as coisas.

Hermes Trimegisto
Corpus Hermeticum - Tratado V

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

A Clarividência e a Clariaudiência - Robert Ambelain


Não devemos confundir Profecia e Adivinhação. Neste último domínio, as mil e uma formas mânticas permitem, pela interpretação de Entidades mal definidas, jamais do Plano Divino (todas dos "planos" intermediários), acessar de modo razoavelmente exacto a um futuro mais ou menos próximo, também (e, mais exactamente), de reencontrar os elementos de um passado mais ou menos próximo.

Neste caso, a Adivinhação se utiliza de uma espécie de convenção pela qual os elementos codificados fazem o adivinho ou a adivinha aceder ao modo de expressão de Entidades às quais já nos referimos. Estas se expressam por um simbolismo convencional, arbitrado, implícita ou tacitamente com o adivinho.

De modo oposto, no plano profético, as Escrituras tradicionais se nos apresentam sob três aspectos e três gêneros de interpretação diferentes.

Há primeiramente, o rô'êh, ou vidente, aquele que vê, com os olhos do espírito, aquilo que os outros homens não vêem. Há também o hôzeh, que é análogo ao primeiro, mas que serve mais especificamente para designar os profetas e adivinhos dos falsos deuses. Há enfim o nâbi, ou intérprete de Deus, que não é apenas aquele que vê, mas aquele que fala, não obstante, a linguagem divina. Neste último caso, e na maior parte do tempo, é necessário que seu verbo seja o reflexo de uma audição interior, mesmo que ela seja instantaneamente associada ao verbo do nâbi.
Portanto, o rô'êh é o que vê, exprimindo então em sua linguagem pessoal e de acordo com a necessidade, o que ele viu, ou o que concluiu de sua visão. E o nâbi é o que ouve, aquele cuja audição e elocução se confundem.

O que caracteriza estes dois arautos do Plano Divino, é que eles não se manifestam jamais por coisas sem importância, por problemas individuais ou excessivamente humanos. Eles são suscitados unicamente para fins gerais e para a defesa de interesses superiores e colectivos.

Desta forma, o Aspirante que verá se desenvolver nele uma destas duas faculdades: clarividência ou clariaudiência, deverá evitar colocá-las a serviço de problemas sem interesse espiritual. Não deverá ainda se imaginar como estando em necessária relação psíquica com Deus, com a Virgem Maria, ou com os grandes Arcanjos! E é aí que o dom do discernimento dos espíritos lhe será indispensável. Ele se lembrará que todas as manifestações de Entidades inferiores, e especialmente de Espíritos Tenebrosos, é sempre em um ponto qualquer, marcada pelo grotesco, pela inconsequência, onde residem os germens da anarquia. Se os períodos de manifestação destas faculdades coincidem com um clima geral interior imoral ou amoral, se a sexualidade se revela muito exigente, se as teorias de facilidades acompanham este género de Fenómenos, que o Aspirante saiba bem que está sendo joguete de Entidades inferiores. Ainda mais se ele emite teorias particulares, favorecendo assim seu orgulho, se tem a impressão de ter sido escolhido por seus méritos e por suas qualidades intelectuais, se se crê chamado à modificar ou completar um corpo religioso qualquer, na verdade para deturpar os ensinamentos tradicionais, conhecidos por sua excelência e sua alta espiritualidade. O que caracteriza de facto o profetismo, é que integrado no quadro de uma Revelação, se ele fala realmente em nome dela, não saberia transformar por ela um espírito de contradição e uma fonte de desordem.

O profeta é sempre o "possuído" do Espírito Santo, o adivinho é sempre o "possuído" de um Espírito Intermediário, o médium é sempre o "possuído" de um Morto. Situar as fontes de suas vaticinações respectivas, é situar o nível de suas espiritualidades. A Clarividência corresponde ao Mercúrio dos Sábios, e a Clariaudiência ao Enxofre dos Sábios.

Em conclusão, a mortificação dos nove Sentidos do Homem deve abranger o conjunto de suas actividades biológicas e psíquicas, portanto, sobre o Corpo e sobre a Alma. Pois é o Homem como um todo que, se não for absolutamente disciplinado, estará vulnerável à queda.

Sem dúvida, não é verdadeiro dizer que é a vontade quem peca, mas ela tem por cúmplices e por instrumentos o Corpo, com seus sentidos exteriores, e a Alma com seus sentidos interiores. Então, novamente, o Espírito é prisioneiro, e de uma prisão ainda mais sombria que a de antes.


Robert Ambelain 

(fonte: Hermanubis)

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

A sublime origem do homem - Louis Claude de Saint - Martin



A sublime origem do homem, sua queda, o horror da privação atual, a necessidade indispensável de que Agentes invisíveis trouxessem socorros superiores à Terra e empregassem meios sensíveis para tornar eficazes as virtudes, eis tantas outras verdade gravadas de tal forma no homem que todos os povos do Universo as celebraram, deixando-nos tradições que as confirmam. Todas as narrativas históricas, alegóricas e fabulosas encerradas nessas tradições falam do primeiro estado do homem na sua pureza, dos crimes e da punição do homem culpado e degradado. Expõem com igual evidência os favores das Divindades para com ele a fim de minorar-lhe os males e libertá-lo das trevas. Não bastou a deificação dos homens virtuosos que deram aos semelhantes os exemplos de justiça e benignidade e que com suas ações reproduziram alguns vestígios de nossa primeira lei. Não se receou fazer as próprias Divindades descer à Terra para levarem ao homem os socorros superiores que não podiam ser dados a conhecer pelos Heróis mortais e para exortá-lo a tornar-se semelhante a elas, como o único meio de ser feliz. Ao mesmo tempo, aqueles que tiveram o cuidado de nos transmitir tais narrativas são acordes em representar as Divindades benignas sob formas sensíveis e análogas à região em que habitamos, porque sem isso seus socorros teriam ficado, de algum modo, perdidos para os seres corporificados da forma tão grosseira como nós. E em todas as Nações os socorros das Divindades benignas foram celebrados através de cultos. Quem ousaria mesmo garantir que todas as leis, usos, convenções sociais, civis, políticas, militares e religiosas que vemos estabelecidas na Terra não sejam vestígios claros das instituições primitivas? Que não sejam emanações, alterações ou degradações das primeiras dádivas feitas ao homem após a queda para trazê-lo de volta ao Princípio? É preciso não esquecer que os homens tudo podem alterar e tudo corromper, mas que nada podem inventar. Teríamos, pois, diante dos olhos, um meio a mais para ler e reconhecer em todas as obras do homem a lei que lhe diz respeito e à qual ele devia ligar-se, visto que, apesar das diferenças infinitas na forma das instituições humanas em todos os lugares da Terra, todas têm o mesmo alvo, o mesmo objetivo, sendo esse alvo manifesto em tudo o que o envolve. Entretanto, é preciso admitir que as tradições alegóricas e fabulosas, à força de quererem tornar os Deuses semelhantes ao homem, com freqüência conferiram-lhes suas paixões e vícios; fizeram-nos agir como os seres mais corrompidos e, aviltando-os assim aos nossos olhos, acabaram perdendo todos os direitos à nossa crença. Mas não devemos sentir que, se a Mitologia se manifesta sob aparências ridículas, tais como os furores, o ciúme e o ardor dos sentidos - que parece ser quase o único móvel dos Deuses e Heróis - é que, por ser um quadro universal, ela dever expor os males e os bens, a ordem e a desordem, os vícios e as virtudes que circulam na esfera do homem. Além disso, as interpretações errôneas das palavras e a ignorância de seu verdadeiro significado conferiram às narrativas simbólicas uma multidão de sentidos ambíguos e forçados que não possuíam na origem, quando representavam objetos tão regulares, elevados e respeitáveis quanto hoje esses símbolos nos parecem imperfeitos, ridículos e merecedores de desprezo. É dessa maneira que podemos explicar em parte as contradições apresentadas pela Mitologia. A ignorância do verdadeiro sentido dos nomes levou a atribuir ao mesmo Ser, a um Herói, a uma Divindade, feitos e ações que pertenciam a seres diferentes. Não devemos, pois, ficar surpresos se virmos o mesmo personagem mostrar em suas ações ora o orgulho e a ambição dos seres mais culpados, ora o mais vergonhoso excesso de libertinagem, ora as virtudes dos Heróis e dos Deuses. Não devemos espantar-nos se virmos o Júpiter mestre do Céu, Chefe dos Deuses terrestres, seus irmãos, e o Júpiter entregue às paixões mais viciosas; se virmos Saturno ao mesmo tempo como Pai dos Deuses e devorando seus filhos; e se virmos a Vênus Urânia e a Vênus Deusa da prostituição. Assim, embora encontremos todos os feitos e tipos reunidos na Mitologia, embora ela apresente, sob o mesmo nome, vários quadros opostos, a inteligência deve discernir-lhes as cores e os verdadeiros objetos. Ainda assim, eu mostraria agora mesmo um ponto de vista claro sobre esse objeto importante, com o qual descobriríamos soluções satisfatórias, porque nele veríamos que é do próprio homem que sai a verdadeira fonte de todas as Mitologias. Não é preciso procurar fora dele a origem natural dos fatos submetidos às suas especulações. Se refletíssemos sobre a universalidade das opiniões dos Povos com relação às manifestações visíveis das Potências divinas, sobre as provas apresentadas de que elas são necessárias ao cumprimento dos Decretos supremos e sobre os vestígios que nos restam de quaisquer instituições estabelecidas na Terra, ficaríamos bem dispostos a crer que tais manifestações realmente ocorreram entre os homens. Confirmaremos essa idéia se considerarmos que se encontram tradições parecidas entre os Povos separados de nosso continente por distâncias consideráveis e mares imensos, entre as Nações que respiraram o mesmo ar que nós e que usufruíram do mesmo sol durante muitos séculos, sem nos conhecerem e sem serem por nós conhecidas. Os diversos Povos da América tinham idéias uniformes sobre a criação do Universo e sobre o número que lhe dirigiu a origem. Admitiam, como os povos Antigos, uma multidão de Deuses benignos e malignos a preenchê-lo e aos quais ofereciam numerosas vítimas em sacrifício.

Concordavam com todos os Povos sobre a perfeição de um estado anterior do homem, sua degradação e o destino futuro dos bons e dos maus. Tinham Templos, Sacerdotes, Altares e um fogo sagrado mantido por Vestais submetidas a leis severas, como entre os Romanos. Os peruanos tiveram chefes visíveis, que, como Orfeu, diziam-se filhos do Sol, ganhando as homenagens de suas regiões. Tinham um ídolo cujo nome, segundo os Intérpretes, significa três em um. Os mexicanos tinham um ídolo que consideravam como um Deus que tomara um corpo em favor da Nação. Talvez bastasse mudar os nomes para encontrarmos nesses povos a mesma teogonia e tradições que existem desde a mais remota antigüidade no Velho Mundo. Se a persuasão das manifestações visíveis das potências divinas e de suas necessidades não fosse no homem um sentimento essencial e análogo à sua própria natureza, essas opiniões seriam transmitidas apenas pela tradição, progressivamente. Não teriam existido entre esses Povos se eles jamais se houvessem ligado a nós por algum elo, ou teriam sido apagadas da lembrança deles com o correr do tempo, já que as tínhamos compartilhado com eles em tempos tão primitivos, depois de nossa separação. Com essa alternativa não pretendemos fortalecer as incertezas e desconfianças que posam ter reinado sobre a diversidade de origem de todos esses Povos. Hoje não há mais dúvida de que o norte da Ásia se comunica estreitamente com o norte da América, de que o estreito que separa esses continentes não esteja repleto de Ilhas que lhes tornam mais fácil a comunicação, enfim - de que seus habitantes não comerciem juntos e até mesmo de que no norte da Ásia não haja Povoamentos americanos. Independentemente dessa via de comunicação entre os dois continentes, é preciso crer que, no intervalo transcorrido desde os primeiros séculos, vários Navegadores, do Oriente ou do Ocidente, foram lançados a essas praias desconhecidas, onde, criando povoamentos diferentes em diversos lugares, lhes terão transmitido os vícios e as virtudes, a ignorância e as luzes que traziam. 17 1782. (N.T.) Se considerarmos a diversidade das Nações que habitavam a América, a variedade extrema de seus costumes, usos, línguas e mesmo de suas faculdades físicas; se considerarmos que a maior parte dessas Nações ou famílias eram desconhecidas umas das outras, sem mostrarem indício algum de um dia ter havido relações entre elas, demonstraremos sem dificuldade que devem a existência a vários náufragos ou a emigrações do antigo continente, tendo seus antepassados sido atirados a essas costas em épocas diversas e em séculos distantes. Sem nos determos por mais tempo nessa questão, e seja qual for a maneira pela qual esse povoamento aconteceu, não podemos deixar de reconhecer uma unidade de origem primitiva nos Povos cujas distintas espécies podem procriar conosco e cujos frutos, provenientes dessas alianças, procriam por sua vez; nos Povos onde descobrimos os vestígios das verdades que já afirmamos sobre a necessidade da manifestação das faculdades e potências do Ser divino no Universo e perante os homens, e nos Povos totalmente semelhantes a nós por sua natureza, suas idéias fundamentais e tradições. Digamos mais: mesmo que sua origem primitiva não fosse comum à nossa, assemelhando-se eles a nós, devem participar nas mesmas vantagens. Se são homens, se como nós estão privados e necessitados do Ser superior e universal que os formou, esse Ser une-se a eles como a todas as suas outras criações. Assim, mesmo que jamais tivessem tido comunicação alguma com nosso continente, o Ser sempre poderia ter feito chegar a eles as provas e manifestações de seu amor e de sua sabedoria. Quanto à antigüidade dos tempos em que as manifestações das Virtudes superiores começaram a operar entre os homens, as tradições da maior parte dos Povos antigos nos oferecem ainda índices mais seguros. A origem dos Povos está quase sempre envolvida num véu maravilhoso e sagrado. Quase todos se dizem protegidos por alguma Divindade que lhes presidiu ao nascimento, e até mesmo descendentes dela, que os estabeleceu e os sustém por um poder invisível. Isso não nos mostra que há muito tempo o olho da Sabedoria vela sobre o homem apesar de seu crime? Não nos diz que, desde o instante em que o homem se tornou culpado e infeliz, a luz apressou-se a vir-lhe ao encontro repartindo-se, por assim dizer, a fim de ficar ao seu alcance e não deixando, desde então, de espalhar os mesmos benefícios em toda a sua posteridade? A partir das tradições, não seria tão fácil determinar o número de atos solenes de manifestação feitas pelas Potências divinas entre os homens desde essa primeira época. Não estando de acordo neste ponto, as doutrinas antigas, fazem surgir dúvidas sobre a maior parte dos Agentes que nos apresentam, de modo que ficamos reduzidos a pensar que possa haver algumas doutrinas cuja memória a tradição não nos tenha transmitido e que vários daqueles que elas declaram como verdadeiros Agentes da faculdades supremas jamais existiram, ou não passaram, talvez, de impostores. Certamente as observações bem atentas e fundadas sobre o conhecimento das verdadeiras leis dos Seres poderiam servir-nos de guia para numerar essas manifestações e calcular-lhes as épocas. Segundo as noções mais naturais, devem ser iguais e relativas ao número das faculdades e virtudes abandonadas pelo homem, ou seja: análogas à verdadeira natureza do homem, cujos complemento e exatidão devem operar por seu número. Mas a geração presente ainda não chegou a esse ponto. As falsas idéias que concebeu sobre o homem e seu destino fecham-lhe mais uma vez as rotas que conduzem ao Santuário da Verdade. Pelas mesmas razões não devemos ficar surpresos se o sentido sublime que deixamos entrever nas tradições mitológicas dos Povos antigos parecesse imaginário à maior parte das pessoas. De tal forma elas perderam de vista a ciência de seu Ser e a de seu Princípio que não mais conhecem quaisquer das relações que os ligarão eternamente um ao outro. De fato, nas narrativas mitológicas o vulgo só vê um jogo de imaginação dos Escritores ou a corrupção de tradições históricas, ou talvez os efeitos da idolatria, do temor ou da tendência que dos Povos para com os feitos maravilhosos. Assim, excetuando-se algumas alegorias engenhosas, tudo na fábula lhe parece bizarro, ridículo ou extravagante. Homens estimáveis, colocados na classe dos Sábios, empregaram a mais vasta erudição para a esse respeito estabelecer sistemas mais sensatos do que a opinião comum. Mas, como não se aprofundaram bastante na natureza das coisas, sua doutrina permanece, por mais imponente que possa ser, abaixo das tradições que tentaram interpretar. Não podemos emitir outro julgamento sobre os que limitaram o sentido das tradições mitológicas exclusivamente a um objeto inferior e isolado e que se esforçaram por fazer ver nele, em todas as situações, o sistema particular que haviam abraçado, sem percebermos que as tradições, por não possuírem todas o mesmo caráter, não podiam tolerar a mesma explicação;. sem percebermos que umas, ligadas à alta antigüidade, encerravam os emblemas das verdades mais profundas; que outras, muito mais modernas, só deviam a existência à superstição e à ignorância dos Povos que, não tendo compreendido as tradições primitivas, alteraram-nas, confundindo-as com as tradições posteriores e particulares de cada Nação; que a mistura dessas tradições, os preconceitos dos Historiadores e os frutos da imaginação dos Poetas lhes haviam aumentado a obscuridade. De modo que, longe de querer concentrar a Mitologia num objeto particular, deveríamos antes admitir que ela apresenta fatos que não têm analogia alguma. E se se permite que os Observadores nela busquem relações com a classe das coisas que lhes são conhecidas, a razão nos proíbe que sejamos cegos para não vermos nada além e reduzirmos emblemas que podem ter um alvo mais vasto e mais elevado a um objeto inferior e com limitações.

Ela se opõe, bem mais ainda, a que se dêem a essas tradições e emblemas um sentido e alusões que jamais poderia convir-lhes. São essas aplicações falsas e estreitas que tenho o propósito de destruir a fim de elevar o pensamento do homem a interpretações mais justas, mais reais e mais fecundas. Entretanto, para não mais nos desviarmos de nossa marcha, da qual essas observações são meros acessórios, limitar-nos-emos a examinar os dois principais sistemas mitológicos, o que bastará para fixar nossa opinião sobre todos os outros. O primeiro desses sistemas apresenta, em todas as Fábulas da Antigüidade, símbolos dos trabalhos campestres, indícios do tempo e das estações próprias à Agricultura e todas as leis que a Natureza terrestre e celeste é forçada a seguir para o crescimento, a manutenção e a vida das produções da vegetação. Tendo concebido esse sistema, os Observadores fizeram esforços admiráveis para justificá-lo, nele encontrando relações com todos os detalhes da Mitologia. Mas, para perceber-lhe a imperfeição, um pouco de atenção será o suficiente. Em tempo algum e em Povo algum se viu fazerem figuras que fossem mais belas e mais nobres do que as coisas figuradas. Se pretendêssemos que o homem empregou o superior como emblema do inferior ao imaginar símbolos e hieróglifos mais elevados e mais espirituais do que o objeto que queria designar, não estaríamos lançando por terra todas as noções que temos da marcha do espírito do homem? Pelo contrário, não é certo que o verdadeiro alvo do símbolo seja o de velar ao olhos do vulgo alguma verdade, cujo emprego errôneo ou profanação deveríamos temer se ela fosse revelada? De fazer com que aquele que não é digno dessa verdade tenha dificuldade em descobri-la ou em subir até ela através do símbolo, enquanto os ditosamente preparados perceberão com um relancear de olhos todas as relações que ele encerra? Não é certo que os símbolos e os hieróglifos são quadros ou signos destinados a fazer com que as verdades e as Ciências úteis se tornem sensíveis à maioria das pessoas, tornando-se compreendidas por aqueles cujo espírito limitado não poderia percebê-las nem conservar-lhes a lembrança sem o socorro dos signos grosseiros? Essas definições simples demonstram de modo satisfatório que os emblemas, as figuras e os símbolos não podem ser superiores e nem mesmo iguais a seus tipos, porque então a cópia se elevaria acima do modelo, ou poderia confundir-se com ele - o que a tornaria inútil. Basta, pois, comparar a maior parte dos emblemas mitológicos aos tipos que os Intérpretes quiseram dar-lhes para decidirmos, de acordo com a inferioridade dos tipos, se sua aplicação pode apresentar alguma exatidão. Examinemos o que parecer mais nobre e mais engenhoso, ou os detalhes grosseiros e mecânicos da Lavoura ou das Pinturas vivas nas quais se representam todas as paixões e onde são personificados todos os vícios e virtudes. 

Examinemos, além disso, se podemos considerar as constelações celestes e suas influências sobre os corpos terrestres, com referência à vegetação, como o tipo da Mitologia. Como essa opinião apresenta a mesma inferioridade do tipo quanto à figura, os mesmo motivos a tornam inadmissível. Quanto aos signos astronômicos vulgares, sobre os quais gostaríamos de fixar exclusivamente o nosso pensamento, digamos que, por ignorância, o homem estabeleceu quase todos eles em divisões ideais, com nomes arbitrários de animais, personagens e outros objetos sensíveis. 

Imaginárias e convencionais, as relações que deles nos são apresentadas não oferecem a idéia de um verdadeiro tipo, não passando de figuras vagas, estranhas aos Verdadeiros signos astronômicos e às Virtudes que lhes servem de móveis. Isso deve bastar para abrir os olhos àqueles que, por perceberem apenas um objeto isolado nas tradições das fábulas, crêem que a Mitologia dos antigos deve a origem somente à Agricultura e à Astronomia.


Louis Claude de Saint-Martin 
in "Quadro Natural das Relações Existentes Entre Deus, o Homem e o Universo"
(fonte: Hermanubis) 

domingo, 5 de setembro de 2010



“Um verdadeiro Cristão é inteiramente diverso do meramente externo. Os primeiros cristãos formavam uma organização secreta, uma escola de Ocultistas, adoptando certos símbolos e sinais a fim de representarem as verdades que compreenderam e, dessa maneira, poderem comunicá-la entre si, ocultando-se dos ignorantes.
Do mesmo modo um Teósofo verdadeiro não é um sonhador mas uma pessoa essencialmente prática. Por sua pureza de vida, consegue adquirir verdades elevadas, impossíveis de ser recebidas por indivíduos comuns.”

Franz Hartmann